Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Textos
Força do hábito
O hábito é uma coisa formidável. Os muitos anos de experiência. sentado atrás daquela mesa pobre, atendendo pessoas, as mais diversas, me ensinou coisas fabulosas sobre os hábitos. Por exemplo: meus ouvidos, habituados aos tropéis dos passos na escada já sabiam distinguir os que vinham pedir dos que vinham oferecer. Quem tem a oferecer caminha com passos firmes, decididos. Os mesmos passos que os ajudaram a conquistar grandes coisas. Quem padece necessidades tem passos lentos, calejados de frustrações, trôpegos, vacilantes, de quem não conseguiu chegar a lugar algum. São passos de quem, muitas vezes, já não sabe para onde vai.    
                      Numa tarde movimentada de abril, meus ouvidos distinguiram, na balbúrdia vespertina dos rumores urbanos, o lento galgar de cada um dos vinte degraus e meus olhos, também habituados às imagens mais grotescas, não se surpreenderam quando viram assomar à porta aquele “belo” exemplar da raça humana. A carantonha já familiar me sorria lerdamente. Recostei-me desanimado no espaldar da cadeira, cruzei os braços e fiquei a contempla-lo mudo, tentando acalmar meu espírito atormentado. Por fim ele rompeu o silêncio:
                      _ Pode me xingar.
                      _ Não vou te xingar, Humberto. Entra.
                      _ Só quero um prato de comida, depois vou embora.
                      Derreou o saco ensebado e sentou-se pesadamente. O cheiro nauseabundo, habitual, encheu a sala. O homem é a espécie animal mais fedorenta do mundo, é por isso que inventou o banho.
                      Conhecia Humberto de muitos anos. Era um vagabundo assumido, andarilho por opção, segundo ele mesmo. Passava pelo menos duas vezes por ano. Nunca vi ninguém tão sincero e tão incapaz de se ofender. Às vezes respondia aos meus xingamentos com um “você é ótimo” ou “você está coberto de razão”. Uma vez me disse: _ você nunca vai me ofender, Carlinhos. Nada que você me fizer de mal poderá apagar o bem que já me fez. Disse-me que nos anos oitenta era chefe de família gerente de um supermercado. “Eu não tinha um minuto sequer de paz. Não havia um só dia em que eu não tivesse dezenas de compromissos fossem eles do meu trabalho ou os chamados “sociais” do tipo aniversário da sogra, posse do doutor fulano de tal como presidente da associação assim-assim do escambal. Me pergunta agora que compromisso tenho hoje?  
                      Naquela tarde, olhei para aquele homem descompromissado e agradeci a Deus pelos meus inúmeros compromissos a curto, médio e longo prazo. Eles são para mim o que os trilhos são para o trem.
                      _ Você está se acabando. Eu disse afinal. Fique por aqui uns dias e cuide da saúde.
                      Ele abriu o sorriso de dentes estragados:
                      _ Se você faz questão.
                      _ Agora, tome um banho, faça a barba. Depois vamos cortar esses cabelos...
                      _ Cê está louco. Se eu fizer isso ninguém me dá mais nada.      
                      _ Essa é outra questão: enquanto estiver por aqui não poderá manguear.
                      ( Manguear ou charquear, na terminologia dos trecheiros é o mesmo que esmolar ou mendigar, entre os pedintes profissionais, desses que vêm de carro próprio pedir em Nova Serrana, o termo mais usado é “bater gato”, uma alusão àquele saco alvejado que trazem no ombro como parte de sua indumentária de pedinte )
                      Ele ficou calado por um instante enquanto parecia avaliar  a minha proposta. Por fim disse:
                      _ Você me arranja um pouco de parafina e umas pedras de naftalina?
                      _ Para quê?
                      _ Já que não posso manguear, vou trabalhar. Faço uma pasta muito cheirosa que coloco numas embalagens vazias de filmes fotográficos e vendo para os otários como sendo uma pomada milagrosa para dores musculares...  
                      _ Humberto, você não pensa em recuperar sua dignidade, sua integridade?
                      _ Não. E vou lhe dizer uma verdade incontestável: se eu for me deitar lá na porta da igreja com estes trapos e um litro de cachaça as pessoas vão se compadecer de mim e me oferecerem dinheiro, se você se vestir de sua dignidade e sua integridade e for bater uma picareta, sob este sol escaldante, ganhando salário mínimo para precariamente sustentar os seus filhos, ninguém irá te oferecer ajuda...
                      Ainda estou tentando provar para mim mesmo que também neste ponto, ele estava errado.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 22/09/2011
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