Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Textos
Só pode ser culpa
                      Costumávamos abrigar peregrinos, em situações de emergência, num barraco de meia água, nos fundos da Vila, construção antiga, com cobertura de telhas francesas, testemunhas de décadas  de precário auxílio a famílias carentes, parca ajuda repleta de boas intenções e carregada de ineficácia. Atitudes obstinadas de alquebrados vicentinos, consolados por um triste provérbio, não sei até que ponto verdadeiro: “ai dos pobres se não fossem os pobres”.
                      A maioria dos peregrinos beneficiários do modesto albergue, eram pessoas sem o menor senso de organização, e como só lhes era concedido um pernoite não tinham o menor interesse em cuidar da limpeza e conservação daquele pobre espaço. Assim, não obstante o meu desejo de deixa-lo limpo e bem cuidado, vivia em petição de miséria.
                      No quintal, uma pequena horta sobrevivia heroicamente à falta de cultivo, pés de couve contorcidos lembravam refugiados da seca lutando pela vida, num baldado esforço.
                      Numa manhã de fevereiro de 1999,  depois de uma noite de muita chuva, logo que cheguei alguém veio me informar que havia “um cliente” no barraco. Fui levar-lhe o dejejum e quando abri o portão que dava acesso ao quintal fiquei surpreso. O desconhecido estava trabalhando na horta e já havia feito um excelente trabalho. Os canteiros estavam limpos e livres das plantas indesejáveis, ele havia desbastado os pés de couve e com as mudas formado novos canteiros. Tinha, notavelmente, muito conhecimento em horticultura.
                      _ Bom dia!
                      Ele ergueu-se ao perceber minha presença:
                      _ Bom dia, senhor. Espero que não se importe, tomei a liberdade de dar um trato em sua horta.
                      Convidei-o para o café e entrei no barraco, este estava impecavelmente limpo. Sentei-me e fiquei aguardando que ele entrasse. Enquanto esperava pude observar que ele havia mexido também no telhado, ajustado as telhas aqui e ali eliminando algumas goteiras de que eu tinha conhecimento. Ele chegou à porta, tirou as botinas sujas do barro da horta e calçou as chinelas que já havia deixado estrategicamente ali, foi ao lavabo lavou bem as mãos, secou-as minuciosamente e só então sentou-se para o café. Disse que estava indo a pé para Alpercatas - MG e vinha vindo do Mato Grosso onde estivera trabalhando numa fazenda. Segundo seus cálculos, e via-se que era bem informado, faltavam quinhentos e vinte e sete quilômetros para chegar a seu destino.
                      Tenho um preconceito terrível: desconfio das pessoas talentosas que não possuem nem o necessário. Alguma coisa deve estar errada com uma pessoa assim. E ali na minha frente estava um caso clássico. Senti, porém, uma vontade irresistível de segurar aquele homem por ali uns dias, eu poderia dar-lhe trabalho até que ganhasse o suficiente para ir embora de ônibus.
                      Ficou por uma semana.
                      Naquela mesma manhã a chuva voltou com muita força. Era impossível continuar o trabalho na horta. Ele pediu-me jornais velhos e pôs-se a tecer inúmeras cestas, aquilo que eu ia jogar fora ele transformou em formidáveis lixeiras. Assim se comportou o moço enquanto permaneceu conosco, não houve nada que suas mão habilidosas não tenham consertado nesse período.
                      Influenciou-me tanto que senti um desejo enorme de me organizar. De concertar tudo o que estava errado em minha vida. Comprei uma pequena caixa de ferramentas e tomei gosto por gastar meu tempo livre concertando coisas. Na minha casa, troquei o reparo daquela torneira que havia três meses pingava sem parar, lubrifiquei fechaduras e dobradiças, troquei lâmpadas e fusíveis, lixei e pintei grades e portões... descobri que a vida é mais gostosa quando as coisas ao  meu redor funcionam. As portas não rangem, os aparelhos elétricos não soltam fumaça, o ambiente é mais colorido e iluminado, com flores e folhagens a alegra-lo.
                      Uma tarde daquele mesmo fevereiro, quando eu concertava a boneca paraguaia da minha filha, minha mulher se aproximou como quem quisesse falar sério. Interrompi o trabalho, fitei-a e fiquei esperando a bomba:
                      _ Você tem outra?
                      _ Co como? Respondi atordoado.
                      _ É. Isso mesmo. Você arranjou uma amante?
                      _ Por que isso agora? Que pergunta mais sem propósito.
                      _ É o que dizem de um homem que começa a dar muita atenção em casa. Só pode ser culpa.  
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 22/09/2011
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