Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Textos
O homem do saco
                     Eles me assombravam. Sujos e barbudos, os cabelos compridos e as roupas rasgadas, o saco enorme nas costas. Eu os via solitários pelos caminhos ou deitados na calçada sobre um pedaço de papelão e cobertos por um trapo imundo e malcheiroso. Paravam de frente ao portão de nossa casa, pediam comida, minha mãe achava um jeito de dividir nossa miséria, alguns agradeciam outros diziam desaforos, reclamando da parca refeição. Minha mãe refugiava-se comigo dentro de casa, fechava a janelas de tábuas, girava a ridícula taramela de pau. Ela sabia que toda a nossa segurança resumia-se às suas ave-marias cochichadas enquanto olhava pela fresta, a rua empoeirada. Eu ficava agarrado à sua saia observando de olhos arregalados as expressões do seu rosto. Depois de intermináveis minutos, ela suspirava aliviada, fazia o sinal da cruz e abria novamente a janela.
                      À noite eles povoavam meus pesadelos mais terríveis. A luz bruxuleante da lamparina a querosene não conseguia afastar completamente as imagens assustadoras, mas ajudava um pouco. Tinham nomes variados: andarilhos, viandantes, trecheiros, retirantes e outros, mas não importava como fossem chamados sempre me causavam medo. Meu avô materno gostava de contar casos sobre eles. Contava que certa vez um deles chegou em uma casa onde a dona estava fritando toucinho, o cheiro agradável foi o que o atraiu. Pediu comida a um garoto que levou o pedido à mãe. Como a resposta fosse negativa o forasteiro tirou do saco um colar feito de orelhas humanas e disse ao garoto:   _peça à sua mãe que frite estas orelhas para mim. A estória terminava com o homem do saco comendo um bom prato de torresmo com farinha.
                      Na medida em que fui deixando para trás os fantasmas da infância, como nunca tivesse tido notícias de nenhum atentado da parte deles a qualquer morador da cidade, o medo que eu sentia deles transformou-se em compaixão. Sentia uma profunda pena da sua solidão e da sua pobreza até que chegou o tempo em que os conheceria de verdade.
                      Passei sete anos de minha vida atendendo a essas criaturas misteriosas em suas pequenas necessidades, por quem desenvolvi um sentimento novo, uma admiração quase inveja. Como são livres! Não se prendem a absolutamente nada, não levam nada de valor naquele saco, ele representa pouco mais do que parte de sua indumentária, tanto faz leva-lo como deixá-lo para trás. Não guardam nem a própria roupa, se ganham uma roupa limpa deixam a suja na lixeira, desconhecem a previdência mas deixam tudo por conta da Providência.
                      Conheci milhares deles. Guardo a história pessoal de centenas e a única razão que encontrei para esse modo de vida é mesmo o gosto por uma vida errante. Tentei tirar muitos deles do trecho propondo-lhes ajuda para conseguirem moradia e emprego mas percebi que são coisas que os repugnam. Dei a muitos meu testemunho de vida ajustada de homem equilibrado, pai de família exemplar e dado ao trabalho, falei-lhes do meu orgulho de estar há muitos anos no mesmo emprego e tudo que consegui foi um brilho de compaixão nos seus olhos. Muitos me convenceram mesmo que eram mais felizes do que eu.
                      A maioria acha que tomar banho, vestir roupa limpa, fazer a barba e cortar os cabelos é contraproducente. Quando eu lhes fazia tal proposta a achavam indecorosa: _ Tá doido, patrão? Como é que vou manguear vestido de doutor? Manguear é parte de uma terminologia própria desta casta admirável, que quer dizer mendigar.
                      Mas um dia atendi um baiano que encontrava-se em estado lastimável, não soube me dizer há quantos meses não tomava um banho. Eu havia recebido em doação um terno azul marinho muito lindo com uma camisa branca impecavelmente limpa e bem passada. Convenci-o a tomar banho e vesti-lo. Ficou irreconhecível. Quando se olhou no espelho deu o mais largo sorriso que já vi, e virando para mim:
                      _ Vou te dar de presente o meu bem mais precioso.
                      Pensei que fosse tirar do saco um colar de orelhas, mas não. Era um bastão de madeira de lei, de mais ou menos sessenta centímetros que ele provavelmente usava como arma de defesa. Estendeu-me solenemente o pesado objeto.
                      _Guarde com carinho, patrão. Foi bento por uma cigana lá em Salvador. Tem me dado muita sorte desde que o ganhei, vai trazer sorte para o senhor também.    
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/09/2011
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