Textos
Atendimento de primeiro mundo
Tinha juntado, Com base numa lista fornecida por uma subsecretaria da minha cidade, todos os documentos necessários para a revalidação daquele, mais de vinte ítens. Não poderia dar errado dessa vez. Era sempre assim: tinha que perder um dia de serviço, viajar até outra cidade e quase sempre faltava algum documento. Por isso se precavera. Tinha eliminado todas as chances de dar errado.
Cheguei ao Órgão às oito e quinze. Quinze minutos após terem sido abertas as portas. O guichê já havia sido projetado de um modo que ninguém poderia dirigir-se ao funcionário sem humilhar-se. Falar com o distinto? Só ficando naquela posição em que Napoleão perdeu a guerra. Aquilo só podia ser proposital. A atendente aquele dia era uma matrona gorda, de vasta cabeleira castanho-escuro. Tirou os olhos, contrafeita, do trabalho que executava quando abaixei-me para falar-lhe através do corte em meia lua aberto no vidro. Soprou a unha lixada, umedeceu-a com saliva, examinou, depositou pacientemente a lixa no porta canetas e apanhou a pasta de papéis que eu lhe apresentava. Pareceu-me tão chateada por ter abandonado a tarefa de lixar as unhas que quase me desculpei, por mim, que precisava tanto daquele documento e pelo sistema que me fazia revalidá-lo com tanta freqüência.
_ Trouxe todos os documentos necessários? Ela perguntou abrindo a pasta.
_ Todos.
_ Veremos.
Aquele veremos poderia significar: aposto que não.
Ela ajustou os óculos de grandes aros que se apoiavam sobre as bochechas avantajadas. Foi repassando os documentos um a um. Angustiava-me vê-la fixar atenção sobre algum papel em especial. A análise durou aproximadamente meia hora até que ela sorriu triunfante:
_ Faltou o comprovante de endereço.
Recorri à lista, não constava aquele item.
_ Não está na lista que a subsecretaria da minha cidade me deu.
_ Eles erraram. Acontece.
Não me dei por vencido. Vasculhei minha carteira cheia de papeis velhos. No meio de cartões de visita, endereços anotados em papéis de embrulho, velhos bilhetes de rifas e comprovantes de viagem encontrei uma conta de energia. A funcionária olhou furibunda o papel amarrotado na minha mão. Tomou-o bruscamente, examinou a data, sorriu aliviada e devolveu-me:
_ Não serve, senhor. Tem que ser recente.
Pegou novamente a lixa e voltou a manicurar-se.
Deixei o prédio agoniado. Diabos! Eu ia acabar perdendo mais um dia com aquela m...
A mocinha da lanchonete abriu o seu melhor sorriso:
_ Mais alguma coisa, senhor?
_ Não. Obrigado.
Pensei se o patrão daquela jubiraca não fosse o Governo era me trataria com o mesmo respeito com que aquela mocinha me tratara.
Saindo da lanchonete deparei-me com o escritório de uma destas Companhias do Estado que nos prestam serviços sem concorrência e das quais estamos todos completamente à mercê. Lembrei-me do escritório da mesma Companhia lá na minha cidade. No dia em que precisei dele, logo que pus o pé no lindo tapete de boas vindas com a expressiva logomarca, o funcionário me perguntou irritado: _ Já ligou no 0800?
Mas resolvi experimentar os serviços daquele escritório ali. O funcionário, muito alinhado numa camisa branca, de gravata verde, me atendeu com uma solicitude surpreendente:
_ Posso ajudar, senhor?
_ Sim, obrigado. Preciso de uma segunda via de minha última fatura.
_ Claro, senhor. Sente-se por favor. Não vai levar nem um minuto. Aceita um café?
Tomou os meus dados e antes mesmo que eu engolisse o café, o lépido rapaz já voltava com o documento, de posse do qual, fui ver de novo a jubiraca. Ela atendia um infortunado e haviam mais três aguardando a vez, ou seja: eu estava mesmo era lá para os quintos. Sentei-me no banco de ardósia, duro e frio como tudo ali, disposto a esperar o tempo que fosse. Às onze e quinze chegou a minha vez. A funcionária ergueu-se, em movimentos rápidos como nunca imaginei que fosse capaz. Chamei-a. Ela apenas virou a cabeça.
_ É meu horário de almoço. Importa-se de voltar às duas horas?
E foi então que descobri uma palavra mágica.
_ Importa-se de me chamar o seu SUPERVISOR?
Parece que a sua fome desapareceu por encanto. Ela sentou-se novamente, apanhou a minha pasta e cinco minutos depois entregou-me o famigerado documento.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 28/09/2011