O Quê-que-é-isso
Era só um largo gramado, espaço sem nome, formado entre o triângulo de ruelas descalças, cavadas a cascos de animais e a duras rodas cravejadas dos carros de bois, que não obstante rareassem a cada ano com o advento do automóvel: tinham ainda maior importância por aqui. Minha casa era a de número 1041, última da Rua Pará de Minas, que insistíamos em chamar de Rua da Várzea. A casinha de telhas francesas e janelas de tábuas, ficava no vértice do triângulo. A rua morria numa porteira que se sustentava precariamente nos mourões corroídos pelo tempo; era a entrada de uma antiga fazenda, de propriedade do Sr Zé do Pedro Venâncio, cuja sede era uma casa grande e imponente, caiada e com um barrado de azul-marinho; a mesma cor dos janelões de aroeira. Erguido sobre grossos esteios, o casarão ostentava o belo espigão de telhas curvas e a escadaria de pedras. Lá de casa costumávamos ouvir o burburinho das pessoas que lá viviam, e até o rumor dos seus passos no assoalho de tábua corrida. Para o menino mirrado que fui, preso a barra das saias da mãe severa, a gente do casarão representava um mistério. Não me lembro de ter estado jamais naquela casa ou de ter tido contato com seus moradores, não obstante ser de meu conhecimento que um nosso vizinho a quem chamávamos Bila, e por quem tínhamos muito apreço, era rebento daquela casa.
Partindo daquele ponto para o sul, nascia outra ruela, morro acima, que a gente lá de casa chamava de Rua do Zé Camilo. Ruazinha poenta e erodida, em cujas margens erguiam-se, aqui e ali, pequenas moradias. Uma delas pertencente ao morador que virara referência lá em casa; um barbeiro alegre, contador de causos, que tinha uma grande prole. Algumas daquelas moradias eram cercadas, como a nossa, de arame e taquaras de bambu, sempre com um terreiro de chão batido à porta da sala, margeado por irregulares canteiros de sempre-vivas, cravos-de-defunto, rosas brancas, suspiros e beijos.
Lembro as mulheres varrendo esses terreiros com a vassoura de coqueiro ou com grossos fachos de alecrim do mato. Tais vivendas tinham invariavelmente no terreiro da cozinha uma horta onde vicejavam abundantes verduras, legumes diversos e plantas medicinais. As mulheres trocavam mudas de funcho, alecrim, capim-cidreira, arruda e alfavaca. Ao lado da horta erguia-se um forno de barro protegido por um pequeno coberto que servia ainda para se guardar a lenha seca que alimentava também o fogão.
Eu sabia que se seguisse aquela rua ela ia transformar-se numa estradinha boiadeira até chegar num lugar chamado “Os Amorim”, mas só muitos anos mais tarde vim a empreender essa aventura.
A forma mais eficaz que minha mãe encontrou de me prender em casa foi incutir em mim o medo de algumas figuras pitorescas do lugar. Figuras como o Crispim do Alonso, o Papa-terra, a Emília Doida e muitas outras, circulavam inofensivas pela pequena cidade, mas faziam o terror da criançada. A mim quem fazia mais medo era o Quê-que-é-isso, negro retinto de aparência destruída pelo consumo exagerado de álcool. Certa vez sofrera uma convulsão que o atirou com o rosto na fogueira que acendera para se aquecer, as marcas da queimadura mal curada transformaram suas expressões em caretas assustadoras, acentuadas pelos olhos opacos e remelosos, também seqüela do acidente. Era uma alma boa, de sorriso fácil, sempre repetindo o chavão que lhe rendera a alcunha: o quê que isso? Mas isso não atenuava o meu medo.
À esquerda da base do triângulo, na embocadura da ruazinha sinuosa, que mais tarde foi aplainada, endireitada e batizada com o nome de 13 de Maio, havia uma pontezinha de madeira sobre o Ribeirão da Fartura, onde costumávamos brincar em nossas escapadas. Próximo dali, no quintal da D. Conceição, viúva do Zé João, que tinha duas filhas balzaquianas solteiras, havia uma enorme árvore de birosca, cujas sementes colhíamos para jogar gude. Bastava que um dos moleques gritasse: “olha o Quê-que-é-isso”, para que houvesse uma debandada geral.
Não raro, as enchentes cobriam a ponte e a água lamacenta entrava pelas casas mais próximas do ribeirão. Nós os meninos tínhamos consciência do flagelo, mas nos divertíamos olhando a movimentação dos adultos lutando para salvar os cacarecos e animais domésticos. Era um espetáculo a confusão dos porcos e galinhas acossados pela inundação perdidos na escuridão da noite ainda fechada de nuvens espessas, exibidas às vezes pelo clarão dos relâmpagos, ameaçando mandar mais água sobre os pobres viventes.
Numa dessas, depois que a água baixou, brincávamos na ponte quando vimos um pé preto, muito inchado, emergir de repente com o movimento das águas que ainda roçavam os pranchões de madeira, onde o cadáver do Quê-que-é-isso estava preso. O pobre homem havia sido arrastado pela enchente.
O fantasma do Quê-que-é-isso me assombrou ainda por muitas e muitas noites insones.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 28/09/2011