Textos
Que a terra lhe seja leve
A sala rescendia a crisântemos, cera queimada, café fresco e perfumes diversos de pessoas chegadas de viagem. O dono da festa estava deitado de costas com as mãos sobre o peito, sisudo e muito bem trajado. Não me lembro de vê-lo tão bem vestido assim jamais. Nem tão cercado de pessoas queridas. Que excelente material para uma crônica! Pensei. Mas já li tantas descrições de velórios que nem sei se as pessoas ainda se interessam pelo assunto. Por outro lado, todos temos um fraco pela defunção alheia. Quer reunir a família e os amigos? Morra. Duas formas de reunir parentes como moscas no mel: ganhar na loteria ou morrer. Como a chance de morrer é maior do que a de ganhar na loteria...
È uma coisa triste. Para participarmos das alegrias em família nunca temos tempo. Aliás, que estranha expressão esta: não tenho tempo! Cada um é igualmente aquinhoado com a mesma porção desse bem de valor inestimável, vinte e quatro horas a cada dia. Cada um faz livremente do seu quinhão o que bem entende. Conheço raras pessoas que o aproveitam bem. Cantam, dão risadas, visitam amigos e parentes, pintam, compõem belos poemas, escrevem livros maravilhosos, bendizem a vida e louvam a Deus. Conheço uma multidão de outras que arrastam os dias como se fossem fardos. Lembro-me de um amigo que levava a vida muito a sério. Trabalhava muitas horas por dia sempre muito exigente consigo mesmo e conseqüentemente muito mais exigente com os demais tornando o ambiente ao seu entorno muito desagradável. Estava sempre enfezado _ não conheço a etimologia desta palavra, mas acredito que tenha a ver com fezes. De qualquer modo a impressão que o meu amigo passava é mesmo de que estava sempre na merda. Não está mais entre nós. Morreu jovem, corroído por um câncer implacável. Já recebeu a maior homenagem dos parentes e amigos. Tomara que no céu aceitem pessoas enfezadas. Ele era bom.
Este aqui, eu o conheci bem. Dei muita risada com ele. Gostava de ouvir os seus casos. Vivia falando dos irmãos que moram em Goiás e dos sobrinhos que ainda não conhecia. Estão chegando aí, ó. Depois que passa a procissão é que tiram o chapéu. Acabaram de ligar. Fretaram um microônibus. O velório promete a alegria de muitos reencontros.
Compadre Jair Bueno contou-me outro dia a experiência por que passou no velório do amigo de um amigo. Foi levá-lo de carro a uma cidade vizinha, por que se o caso é de morte não é de mau tom pedir tais favores. O tal amigo que em vida fora católico, foi velado num templo evangélico, os problemas de incompatibilidade de crenças começaram com a imagem do Cristo Crucificado à cabeceira do morto e culminou com a reza do terço e o ofício de Nossa Senhora. Lá pras tantas surgiu no velório um bêbado. Porque, convenhamos, velório sem a presença de um bêbado não tem graça. O vozerio cochichado da parentalha foi interrompido na expectativa do que o recém chegado aprontaria. Pois ele tirou o chapéu, benzeu-se, passou a mão levemente pelo filó que cobria o corpo, essas coisas indispensáveis a todo bom freqüentador de velórios. Contemplou longamente o falecido e fez o comentário oportuno: Coitado! Da família toda, era o único que prestava.
Já o Itamar conta que lá no Batatal, um casal que cuidava da tia idosa, ao perdê-la para o inevitável, realizaram o velório em casa mesmo. O marido muito hospitaleiro e consciente de suas obrigações de sobrinho e anfitrião ficou ao lado do caixão fazendo sala aos que chegavam e recebendo as condolências. Lá para as três da madrugada chamou a mulher e deu a ordem irrefutável:
_ Fique aqui agora. Tenho que ir lá fora chorar um pouco. Não tive tempo de chorar ainda.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 03/10/2011