Sinapismo
Agricultores mato-grossenses seguram os grãos à espera de preço. A manchete não queria dizer que o sertanejo do Mato Grosso está coçando o saco, como faz muita gente justificando na crise sua mal dissimulada indolência, e sim armando uma estratégia, naturalmente usual no agronegócio, na tentativa de valorizar o fruto (literal) de seu trabalho. Governo egípcio decide matar todo o seu rebanho suíno, também não significava que aquele governo pretende encher lingüiça, como é um procedimento natural num chefe de nação, mas que toma uma medida drástica de prevenção contra a gripe suína. Naquele país de maioria muçulmana somente os cristãos consomem carne de porco, como eles são só dez por cento, vão ficar sem o rebanho de trezentas mil cabeças. Aí o notíciário dá um giro pelo mundo: os EUA proíbem viagens ao México, em aeroportos do Japão à Coréia do Sul, da Grécia á Turquia, câmeras de infravermelho observam passageiros para detectar sinais de febre. No Líbano, onde é usual o cumprimento com beijo, o mesmo está sendo desestimulado pelas autoridades. E aí, é gente querendo mudar o nome da gripe, uns afirmando que o pobre do porco nada tem a ver com a peste, que gripe de porco não pega em gente e por aí afora. Como sempre, não há muita uniformidade de opiniões nem muita certeza de coisa alguma. Os maiores entendidos agem como cachorros que caíram de caminhão de mudança.
Lembrei-me da gripe espanhola que, segundo calcula-se afetou 50% da população mundial, tendo matado de 20 a 40 milhões de pessoas, pelo que foi qualificada como o mais grave conflito epidêmico de todos os tempos, da gripe aviária, da SARS, do chupa-cabra, do ET de Varginha, do salário mínimo, das filas da Caixa Econômica. Dei a volta ao mundo em oitenta desgraças e voltei ao ponto de partida: crise econômica internacional que, aliás, com o advento da gripe suína ficou em segundo plano. Parou-se de ovacionar a danada e o comércio até reagiu. Afinal, parece que as crises são iguais a duplas sertanejas: uma fica em evidência até o surgimento de outra, como se no gosto dessa geração massificada não houvesse mais de um lugar. Que semelhança com os sinapismos da minha infância! Quando na falta de recursos da nossa miséria minha mãe lançava mão de meios aborígenes para aliviar nossas dores. Um sinapismo de casca de laranja fervente atado fortemente no antebraço provocava uma queimadura tão dolorida que a gente esquecia a dor de dente.
Estava perdido nessas reflexões quando ela entrou muito acabrunhada, os ombros encolhidos dentro do seu casaco de lã, trazia algo na mão esquerda, cuidadosamente protegido pela direita. A brancura de seus cabelos e as rugas de seu rosto pareciam acentuados pela aflição.
_ Olhe o que está acontecendo. Disse comovida.
No côncavo da mão rugosa estava o seu canário belga ágata topázio mosaico macho, antes tão vivo e saltitante, agora estava amuado, arrepiado e com a cabeça escondida sob a asa. Tomei-o carinhosamente, examinando-o com a velha experiência do criador que fui quando menino. Estava condenado. Os ossos do peito já apresentavam aquele formato de quilha característico das aves em estado de inanição. Não havia o que pudesse ser feito por ele, mas, por ela sim. Estava sentindo-se triste pela doença do pássaro, mas principalmente culpada:
_ Será que não cuidei direito?
Podia ser. Criar canários exige conhecimentos. Mas sua culpa seria só a de não tê-los.
_ Quantos anos ele está com a senhora?
Data é uma coisa que os idosos dificilmente esquecem. Costumam associar um fato a outro para fixá-las na memória:
_ Meu genro me deu quando se casou. Faz seis anos.
_ Ele não está doente. Está senil. Vai morrer de velho e isso é uma coisa muito natural. Não é culpa de ninguém. Deixe que ele descanse.
Pareceu-me consolada. Depois que se foi dirigi minhas reflexões para esse lado da vida: a terceira idade. Deve ser uma época doce. Enquanto carros-bombas explodem no Iraque matando cinqüenta e uma pessoas e ferindo outras setenta e seis; doze países notificaram casos de uma gripe que já matou cento e setenta e seis pessoas só no México; insurgentes morrem em combate no Afeganistão, professores e universitários são massacrados no Azerbaijão, aqui ao nosso redor homicídios, assaltos, acidentes de trânsito, estupros, pedofilia, tráfico de drogas, pirataria, prostituição, desemprego, custo de vida e...
O seu maior problema hoje é um canário doente. Talvez a velhice nos traga a consciência de que o que está fora do nosso controle não deve nos apoquentar.
Publicada em 2009 no Jornal O Diário
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 07/10/2011
Alterado em 11/10/2011