Instinto Materno
Estava decidido. Não iria visitá-lo. O marido sistemático e categórico já havia decidido por ela. Nunca a havia proibido de nada. Não era apenas submissa ao marido que nunca exigira submissão. Ele era tão bom e tão atencioso que se tornara completamente dependente dele. No seu caso a submissão era filha da dependência. Portanto, uma vez decidido por ele, por ela estava. Não fora diferente daquela vez.
_Não criei filho para depois ir tirá-lo da cadeia,sempre expliquei isso para o José, e também para vocês outros. É maior de idade e vacinado. Vire-se por lá. Iria visitá-lo se estivesse num manicômio ou numa casa de recuperação. Na cadeia, me desculpe. Não vou. E façam-me o favor: não me falem mais nesse assunto.
A resposta não estava sendo dada a ela. Não faria um discurso tão longo. Dirigia-se ao primeiro filho. O Toninho. Que tinha o seu nome. Aliás, Antônio José da Silva Filho também não era o primeiro filho. Da sua primeira gravidez nascera-lhes Mariana de Jesus que viveu neste mundo apenas um mês. Segundo o farmacêutico, ela morrera de uma doença de nome esquisito: inanição. Nunca mais ouvira dizer que alguém padecesse daquela estranha moléstia. Somente a sua filhinha. Devia ser uma doença rara. Já vira muita gente morrer de tuberculose, derrame, infarto, sarampo, coqueluche, “difrusso” que o farmacêutico chamava de defluxo e que as pessoas agora chamam de gripe. Vira gente morrer até de fome, mas a tal inanição premiou seu primeiro bebê.
Toninho era um moço obediente e conhecia muito bem o pai para insistir no assunto. Mas a chamou de lado, quando ela preparava o chá noturno no fogão a lenha e explicou a situação. José havia se tornado bebedor inveterado, descuidara-se da própria família, a mulher e as duas filhas pequenas, naquela tarde estava fazendo arruaça lá no povoado. Ele próprio, Toninho, telefonara para a polícia. Pediu que o prendessem até a manhã seguinte, para a sua própria segurança. De manhã iria levá-lo a uma casa que o pudesse ajudar. Explicou-lhe, o moço, que essa atitude chamava-se Amor Exigente. ”É como as chineladas que a senhora nos dava quando éramos pequenos. Pé de galinha não mata pinto, a senhora dizia.” Ela recolheu-se em seu quarto, tristonha e sofrida. Tinha medo que a contrariedade levasse o marido cardiopata. Pensava no filho preso, pai de família e alcoólatra. Era duro de suportar. Lembrava com saudade os sofrimentos de outros tempos...
Estava casada a três anos e grávida do terceiro filho. Marianinha rogava por eles ao Todo Poderoso. Já estava do outro lado. Toninho, muito magrinho e doente ia vingando, o marido agricultor tinha um mandiocal de um ano e meio, no ponto de colheita, mas não encontrava comprador. A fome as vezes batia à porta, ela arrancava umas mandiocas, colocava num saco e equilibrava-o na cabeça, enganchava o pequeno Toninho na cadeiras e rumava para a cidade, vencia com esforço sobre – humano os oito quilômetros de estrada de terra, deserta e poenta, conhecia um açougueiro da Rua do Meio que lhe dava quatro pés de boi pela carga de mandioca. Refazia o trecho de volta com a provisão de proteína tão necessária ao desenvolvimento daquela vida que estava em formação no seu ventre. Chegava em casa já a noitinha. O marido havia chegado da roça com igual cansaço, mas a ajudava a preparar o cozido de pé de boi. O caldo de mocotó com salsinha e cebolinha parecia devolver-lhe toda a energia despendida na longa caminhada.
Não é que o pequeno José nascera forte como um touro? Troncudo, dentro de pouco tempo já dominava pela força física o irmão mais velho. Os anos se passaram e sua situação econômica melhorou muito. Ela teve mais cinco filhos, mas a precariedade da situação em que tivera os dois primeiros sobreviventes fez com que ela desenvolvesse uma indisfarçada predileção por ambos. Toninho tornou-se inteligente e sábio, dado aos livros e as viagens. José, forte e destemido, não raro metia-se em tremendas confusões. Ela percebia agora que a força e a coragem de um fora a sua perdição e a inteligência e a sabedoria do outro estavam salvando os dois.
Ela dormiu finalmente e sonhou que tinha ido ao encontro de Marianinha. Na entrada do céu havia uma porta giratória com detector de pecados, travou à sua entrada, são Pedro aproximou-se com farda de segurança, trazia na cinta a espada com que cortara a orelha de Malco:
_ Tem que colocar seus pecados na caixinha.
Tudo que tinha para colocar na caixinha era um sentimento que entendia como amor, mas que agora compreendia bem: era do tipo que aprisionava, tolhia os movimentos do ser amado. Era para ser virtude, tornara-se defeito.
Publicado no Jornal O Popular em 11/05/2007
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 17/10/2011