Textos
Sabonete - Cem dias sem laços - Cap I
A sombra da grande gameleira alongava-se para leste. Sinal de que o sol declinava. Havia uma brisa leve temperando o calor da tarde risonha. Acabara de galgar, não sem esforço, o forte aclive da rodovia e estava naquele ponto onde se recomenda aos motoristas que testem os freios. A reta declinada perdia-se ao longe e o horizonte vislumbrado além do asfalto tremeluzia. Tirou os óculos de grossas lentes arranhadas e tentou limpa-las com a fralda da camisa, voltou a encavalá-los no nariz suado e constatou que estavam mais sujos que antes. Riu observando o estado de sua roupa enegrecida pela fuligem. Às vezes, sentia vontade de tomar um banho, se barbear, cortar os cabelos, mas era uma vontadezinha de vida curta que logo passava. Ocorria de ver o seu reflexo numa vitrine ou na lataria luxuriante de um automóvel e achava graça no riso de dentes amarelos perdidos na confusão daquela cara barbuda. O estranho no espelho lembrava-lhe um personagem de sua infância de aparência grotesca e cheiro nauseabundo.
Alberto derreou o corpo cansado sobre a macega de capim seco que se formara ao pé da grande árvore, tirou o velho bamba rasgado do pé direito, a meia com um rasgão enorme no calcanhar havia acumulado uma pasta malcheirosa de suor e poeira negra, uma frieira medonha corroía-lhe a base do hálux. Riu novamente, agora do termo pouco conhecido, sobra das aulas de anatomia dos anos de faculdade. À sua mente aflorou a cara redonda do pele vermelha Dr. Juan, o boliviano a quem prestara um serviço de “mula” em Corumbá. Ele se formara em medicina em seu país, mas descobriu que ser traficante no Brasil podia ser mais rentável.
Cruzou a canela direita sobre a coxa esquerda e aproximou dos olhos o pé a fim de observar melhor a avaria causada pela micose. Havia um sulco profundo bem na base do dedão que, ao ser flexionado causava uma dor lancinante além da coceira constante e insuportável. Apanhou um graveto e pôs-se a coçar a fétida ferida. Virou o rosto tentando ignorar o misto de prazer e dor que lhe causava arrepios por todo o corpo.
Foi quando avistou muito longe, na direção de onde havia vindo, um ponto minúsculo que se locomovia lentamente. Certamente outro peregrino alquebrado assim como ele. Revirou a mochila gasta, tirou a garrafa plástica com cachaça e a pequena caneca de alumínio (não gostava de beber no gargalo) serviu-se de uma boa dose. Descalçou o outro pé. Voltou a revirar a mochila donde retirou o volume gasto de Ulisses, o livro de James Joyce mais cultuado do que lido. Estava tentando tornar-se um leitor raro: aquele que haja concluído a leitura daquela obra, estava na vigésima sétima das oitocentas e quarenta e seis páginas e tudo o que conseguira tirar do livro foram boas cochiladas, mas estava mantendo a média de uma página por dia. Serviu-se da mochila como travesseiro e reingressou no mundo de Stefen Dédalus, Leopold Bloom e Molly naquelas poéticas dezoito horas vividas no dia 16 de junho de 1904.
Quando acordou sentou-se, ajustou os óculos e olhou novamente a estrada, o que antes do sono era um pontinho minúsculo já estava relativamente perto, era mesmo um andarilho empurrando um carrinho de sucatas. Bebeu outra dose de cachaça e retomou a leitura, o álcool parecia dar-lhe maior capacidade de entendimento. O viajante alcançou o ponto onde ele estava quando terminava a página vinte e oito.
No trecho o cumprimento chega a ser dispensável. Encontrar um igual é sempre bom. Companhia com que se possa falar sem a sombra do preconceito, sem medo de causar melindres.
_ Jornada dura, colega?
_ É! O sol hoje tá brabo.
Ele havia estacionado o carrinho à sombra da gameleira e se sentado sem cerimônia, que a falta de cerimônia era o que de mais apaixonante havia naquela vida.
_Acho que pernoito aqui. _ Disse o recém chegado. E esticando o beiço para o carrinho: _Tô levando aí uma boa carga.
_ Alberto se perguntou se não seria carga similar à que tinha atravessado a fronteira Bolívia-Brasil há três meses num carrinho como aquele.
_Aceita uma cachaça?
O outro riu com simpatia segurando um cigarro de palha entre os poucos dentes que lhe sobravam.
_Vou aceitar um pouco da sua. Eu também trago a minha, e da melhor qualidade.
Ele bebeu de um sorvo só e antes de se acomodar para o esperado descanso, foi até o carrinho e voltou com um saco de carvão vegetal e um embrulho de carne salgada, pondo-se, na seqüência, a providenciar os meios de preparar o jantar. Alberto alegrou-se profundamente com a expectativa de comer um bom assado. Já estava pensando em alcançar algum povoado em busca de alimento. Agora a Providência lhe dava condições de também pernoitar ali.
_ Eu sou Alberto.
Já era tempo de se apresentar.
_ Me chamam de Sabonete. Não me incomodo se você também me chamar assim.
_ Sabonete?!
_ Vai descobrir porque.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 04/02/2012
Alterado em 28/02/2012