De como Sabonete compõe sua carga - Cem dias sem laços - Cap. II
Sabonete era um sujeito bazé. Baixo, magro, as pernas arqueadas, devia ter menos de cinquenta anos, mas o rosto encovado, as rugas precoces e a barba grisalha punham-no mais velho. Era calvo e os cabelos que lhe cresceram na parte posterior do crânio estavam amarrados num rabo de cavalo por uma liga de tecido ensebado. O estrabismo em alto grau completava o seu estranho aspecto. Tinha, contudo, uma boa presença. Falava com desenvoltura um português desleixado, mas isento de sotaques. Não tinha, por exemplo, o chiado do carioca nem a ênfase e as interjeições dos gaúchos. Não puxava os erres como os goianos e os mineiros, nem pronunciava as vogais abertas como fazem os baianos, ou o típico “t” e “d” dos nordestinos do Pernambuco e da Paraíba. Sua palestra tinha, porém, a marca da absorção de traços culturais das diversas regiões do país o que levou Alberto a deduzir que passara a vida inteira no trecho e conhecia todo o Brasil.
Seu carrinho era uma caixa de surpresas. Via-se que era um homem precavido e, na medida em que possibilitavam suas difíceis condições, era organizado. Carregava uma garrafa térmica de cinco litros escalavrada pelo uso que reabastecia de água gelada nos postos de gasolina, levava os apetrechos de preparar sua própria comida e café. Fazia-se assim mais ou menos independente da caridade alheia. Enquanto palrava no calor da tarde sob a copa da frondosa gameleira ia preparando o jantar. Recolheu pedras e improvisou um fogão que chamou de tucuruba, segundo ele, nome primitivo dado pelos índios ao fogão de lenha. Não levou mais do que alguns minutos para juntar suficiente quantidade de madeira seca, troncos apodrecidos e gravetos, acocorou-se junto ao seu engenho e acendeu com incrível habilidade o fogo, sobre o qual, assentou a pequena panela enegrecida onde pôs o arroz para cozer. O lusco fusco da tarde os apanhou alegres ao efeito da cachaça, saboreando o guisado fumegante.
Àquela hora os motoristas acendiam as luzes e os veículos formavam um rosário luminoso distendido ao longo da rodovia. Hora do Ângelus “Angelus Domini nuntiavit Mariæ”, momento pungente, não apenas agora nessa estranha fase de sua vida, mas sempre. Sempre sentiu aquele aperto no peito à hora do crepúsculo. Na pequena cidade onde vivera sua meninice, àquela hora os sinos tocavam e os auto falantes instalados na torre da matriz jogavam sobre os pobres viventes a avemaria de Schubert. Dolorida. Angustiante. Muitas pessoas se ajoelhavam e rezavam, inclusive os seus. Saudade daquela fé!
O céu ecureceu rapidamente exibindo uma profusão de estrelas que lhe evocavam lembranças de tempos idos, os quais lhe seria mais proveitoso esquecer. Detestava aquelas reminiscências felizes que lhe deixavam com um irremediável sentimento de perda. Puxou conversa com o novo companheiro afim de mudar o rumo das idéias:
_ Pretende ir para onde?
_ Estou próximo do meu destino. A próxima cidade está a apenas alguns quilômetros. Faço uma parada lá, vendo a minha carga e me reabasteço pra depois seguir viagem.
_Mas qual é o seu destino final.
Sabonete o olhou à fraca claridade do fogo, como se tivesse ouvido a pergunta mais idiota de sua vida, à que respondeu:
_O meu destino final é a morte.
O silêncio voltou, apenas interrompido de quando em quando pelo ruído dos autos na Rodovia, cujo movimento diminuíra sensivelmente com o avançar da noite. O sono e o cansaço da caminhada daquele dia começava a roubar-lhes a disposição para a conversa.
A manhã chegou radiosa. Alberto acordou quando Sabonete preparava o café. Este percebendo-o acordado disse à guisa de cumprimento:
_Hoje o dia vai ser brabo! O sol de agosto vai arrebentar mamonas.
O outro ergueu-se olhando o horizonte onde o sol vermelho se levantava. Anuiu num gesto silencioso de cabeça. Aceitou a caneca de café fumegante que Sabonete lhe estendia.
_Obrigado!
_Vou caminhar. Você vem?
_Não te aborreço?
_Se isso acontecer te aviso. Você me ajuda com o carrinho nas subidas. Chegando à cidade, vendo a carga e lhe pago um almoço.
_Te ajudo sem o empenho da palavra.
_Não vamos assinar nemhum contrato.
Alberto recolheu sua pequena tralha acompanhando com os olhos o outro que já alcançava a rodovia epurrnado seu trombolho. As mãos tremiam, o que o levou a buscar na mochila a garrafa plástida com o resto de cachaça que sorveu no gargalo sem tempo de procurar a pequena caneca. Estranhamente, ainda sentia um ligeiro incômodo de beber tão cedo, mas ninguém precisava saber. Pos-se em marcha alcançando rapidamente o homem do carrinho:
_Ainda que mal lhe pergunte, o que leva aí?
Ele parou, deu a volta no carrinho e ergueu a lona, sob a qual havia uma enorme quantidade de sabonetes das mais variadas marcas. Um agradável cheiro de banho subiu-lhe às narinas. Inexplicavelmente veio-lhe à mente a doce imagem de Mary Mar, a paixão de sua adolescência, negrinha de lindas espáduas, corpo esbelto e empertigado, que emanava incrivel cheiro de flores do campo. Tinha um lindo nome latino: Consuelo, mas por cauda da música popular que muito coincidentente a descrevia tal como era, chamava-lhe Mary Mar.
_Caramba, cara! Onde arranjou tanto sabonete?
_Olhe para mim, cara. Quem é que me negaria um sabonete se eu dissesse que estou louco para tomar um banho?
Alberto nada disse. Apenas ria copiosamente. Sabonete continuava:
_Em cada cidade que passo, peço um sabonete de casa em casa até juntar o número de quinhentos, que transporto até a cidade seguinte. Ali eu os vendo a um desses bodegueiros de bairro. Faço nova coleta e pego novamente a estrada deixando centenas de pessoas com a agradável sensação de ter feito o bem.
Após alguns instantes de boas risadas, retomaram a marcha. Às dez horas passaram por uma comunidade rural chamada Novaes onde pararam, tomaram água e se refrescaram um pouco. A próxima cidade estava a alguns quilômetros. Pela previsão de Sabonete chegariam lá pelas duas da tarde.
_Hora boa!
_Hora boa!
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 05/02/2012
Alterado em 28/02/2012