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Ângela - Cem dias sem laços - Cap. III
Quando chegaram ao primeiro trevo da cidade Alberto não pode esconder do companheiro de caminhada o alívio. Sentia-se esgotado, faminto e o organismo reclamava uma dose de álcool. A frieira no hálux direito parecia ter se agravado e o esforço para não manquejar lhe causava câimbras no outro pé. Havia um bairro á margem esquerda da rodovia, mas a cidade se descortinava à direita. Pareceu-lhe atípica desde aquele primeiro lance do olhar. Predominavam os galpões de fábricas numa profusão de cores vivas ao sol da tarde. As fachadas com grandes letreiros com marcas de calçado esportivo, algumas já suas conhecidas. Se bem que o bairro à esquerda era formado de pequenas residências em alvenaria, construções baixas com cobertura de laje maciça e sem telhados. Tais habitações estavam, na sua maioria sem acabamento, o que talvez se devesse ao pouco tempo de existência do loteamento e a grande demanda por moradia, ocasionada pela afluência de migrantes em busca de trabalho nas fábricas.
_ Tenho um conhecido aqui no Veredas. Sabonete estava dizendo. Já fiz negócios com ele. Providenciar-nos-á um lanche. Descansaremos um pouco e caminharemos até o outro trevo. Se entrarmos por lá iremos direto ao centro.
Alberto assentiu com um gesto de cabeça. Não estava em condições de avaliar naquele momento o que seria melhor. O certo que sabia é que poucas cidades despertaram tanto o seu desejo de conhecê-las. Em muitas cidades por que passara nem mesmo entrou. Queria muito cobrir os dois mil quatrocentos e sessenta e cinco quilômetros de Corumbá-MS a Vitória-ES em cem dias. Para isso teria que andar diariamente vinte e cinco quilômetros, meta que mantivera até ali. Em sessenta e nove dias havia caminhado mil seiscentos e setenta e seis quilômetros, faltavam ainda setecentos e oitenta e nove quilômetros para andar em trinta e um dias, contudo sentia suas forças diminuírem a cada dia, talvez descansasse um dia ali naquela cidade.
Seguiam agora por um acesso de terra vermelha batida de pés humanos e os pneus dos automóveis. Breve alcançaram uma rua pobremente calçada com pedras irregulares o que lhe aumentou as agruras pondo-o de vez a claudicar. O carrinho de Sabonete chacoalhava e ele dizia imprecações. Os raros transeuntes olhavam assustados, aqueles dois seres farrapadas e sujos. Alberto pensou em quantas vezes viu cenas parecidas em outros tempos.
Num dos muitos terrenos baldios já bem dentro do bairro uma grande árvore, remanescente do tempo que aquilo ali era campo, projetava uma sombra muito convidativa a qualquer peregrino alquebrado. Ali Alberto sentou-se sem forças para continuar. Sabonete dirigiu-lhe um olhar compreensivo:
_Pode me esperar aqui.
Continuou empurrando o carrinho e xingando. Alberto deixou-se ficar sem ânimo nem para tirar o velho bamba ensebado e malcheiroso. Olhou o céu muito azul, o sol ainda muito alto. Calculou que seriam umas duas e meia. Para o lado do poente nuvens escuras começavam a se formar, mas Alberto não acreditou que fossem prenúncio de chuvas. Uma profunda tristeza de repente começou a rondar-lhe o espírito. Um outro sentimento ao qual vinha resistindo heroicamente sabendo que ele poderia por tudo a perder também irrompia agora com força redobrada.
_Ah, meu Deus! Isso agora não!
Instintivamente abriu a mochila para confirmar mais uma vez o que já sabia: não tinha mais cachaça. Se Sabonete não voltasse logo estava tudo perdido. De repente um pensamento horrível lhe ocorreu: e se o maluco simplesmente não voltasse? Recostou-se no tronco da árvore e fechou os olhos tentando se acalmar. As lembranças vieram com tudo...
André Luiz e Fernanda o apanharam às vinte horas na república. O amigo e sócio ia receber um prêmio e atribuía a ele parte do mérito. Queria que estivesse presente na cerimônia. Prêmio Revelação Profissional da Cultura, ou coisa assim. Era uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura que premiaria músicos, escritores, jornalistas, professores e outros profissionais da área, bem como empresas ligadas á cultura, como era o caso do jornal Lanterna das Gerais. Naquele ano o jornal havia passado de quinzenário para semanário e já tinha tempo marcado como meta para tornar-se diário. Alberto e André tinham uma boa parceria, o primeiro tinha o diploma e o segundo, leitor voraz de tudo que via pela frente, conhecia as nuances e sutilezas do jornalismo.
Mudar para uma cidade do interior e fundar um jornal parecia no início uma aventura insana, mas enfim ia dando certo. Em três anos já haviam conquistado seu lugar. O amigo conhecera Fernanda logo que chegaram e já estavam casados há quase um ano. Alberto continuava na vida boêmia e promiscua que era sua marca e única razão dos raros embates entre ele e o sócio cristão.
De sua parte achava aquelas cerimônias uma chatice, mas a própria profissão o ensinara a suportá-las. Ossos do ofício. O salão era amplo, bem iluminado e fora decorado com sobriedade e bom gosto. O uísque que tomara antes de sair de casa tornava a situação suportável. Correu os olhos pelas mesas parcialmente ocupadas estudando as possibilidades de encontrar uma companhia feminina que fizesse valer a noite. Poucas de caras agradáveis e já acompanhadas. Não seria fácil. Sentaram-se os três numa mesa próxima ao palco reservada convenientemente para eles, representantes do mais expressivo órgão da imprensa local. O garçom aproximou-se. André e Fernanda pediram refrigerantes.
_ Quero a sua cerveja mais gelada, meu amigo. – Ele disse expansivo.
_Claro, senhor. Só um instante.
Afinal não poderia ser tão mal assim. Pensou. Pelo menos poderia apreciar uma boa cerveja. A conversa do casal de amigos à mesa era em tom intimo como um arrulhar de pombos. Ele não tinha nenhuma inveja daquele tipo de relacionamento. Com tanta mulher no mundo um cara ia se prender a uma definitivamente com essa coisa de fidelidade e indissolubilidade do matrimônio? Que coisa!
_ Que coisa! Quem é aquela moça que chegou ali? Perguntou ao amigo que interrompeu sua conversa amorosa e olhou em direção à entrada.
Uma jovem com altura acima da média, corpo escultural, morena de cabelos longos e lisos caminhava graciosamente pelo salão, procurando um lugar numa mesa, não tardou e as pessoas da mesa ao lado a convidaram a se sentar no ultimo lugar disponível.
_ Não é pro seu bico.
_ Não perguntei isso. Perguntei quem é.
_ Chama-se Ângela. É professora e também será homenageada...
Uma mão ossuda o sacudiu com descortesia, trazendo-o de volta à realidade. Abriu os olhos e viu através das lentes embaçadas dos óculos o seu companheiro de caminhada que lhe estendia um embrulho. Lá dentro havia uma garrafa de cachaça e dois pães franceses recheados com mortadela.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 10/02/2012
Alterado em 28/02/2012