Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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O sebo - Cem dias sem laços - Cap. V

       Quis jogar no lixo a roupa suja que havia tirado. Agora que havia se banhado podia perceber o quanto ela fedia . o funcionário, porem tinha um discurso pronto para situações similares e empregou-o no afã de mostrar-lhe as razões de sua suposta miséria:
       — Suas roupas não estão estragadas. Só estão sujas. Portanto leve-as. Não abuse da Providência de Deus.
       Em outros tempos teria mandado seu benfeitor para os quintos dos infernos. Contudo não conseguia sentir raiva daquela pobre criatura que acreditava em Deus e em uma tal Providência:
       — Pode me dar uma sacola. Minha mochila está cheia.

       Ao sair á pequena varanda, recebeu no peito uma lufada de vento fresco. Refrigério: foi a descrição, em uma palavra, da sensação que teve. O vento trazia um cheiro bom de terra molhada anunciando que a chuva  já estava nas proximidades. Apalpou a mochila, lá estava a garrafa de cachaça que Sabonete lhe comprara, quase cheia, felizmente. A perspectiva de uma noite ao relento sem algo para se aquecer não chegava a ser agradável. Saiu andando a esmo. A mochila presa no indicador direito, jogada ao ombro. Um pensamento ocorreu-lhe de repente. Porque não tirar uma folga naquele final de semana? Era sexta feira, estava limpo e bem vestido. Por que não entrar num lugar agradável, tomar umas cervejas, conversar com alguém com certa cultura, dar risadas? Imagens de jantares na casa de André Luiz, Fernanda pondo a mesa, sempre sorridente. O wisk com gelo de coco, “Arrumação” na voz do mineiro Tadeu Franco, o chiado característico do disco de vinil. André tinha cada idéia! Mas, sabia tirar prazer das pequenas coisas. Até os seus pequenos prazeres eram minuciosamente programados: comprei um aparelho de som, quero que você veja. Vá jantar la em casa hoje. Imaginara um equipamento de última geração. A vitrola tinha um enorme gabinete em cerejeira. Rira muito ao deparar-se com aquele trambolho no meio da sala do sócio. Bastou, porém, afundar-se no sofá com o copo largo na mão, o tilintar do gelo, o chiadinho da agulha no disco de vinil, Franco chamando Josefina na canção de Elomar, para se impressionar novamente com o gosto apurado do amigo.
         Era isso: definitivamente iria a um lugar agradável tomar cerveja e conversar com alguém com certo grau de normalidade. Havia apenas um pequeno problema: não tinha dinheiro e não sabia manguear*, era um assunto a resolver. O que é que levava consigo de que podia se desfazer? Bingo! Ulisses, por que não?
         Passava defronte ao Corpo de Bombeiros, um soldado deixava seu turno: boa tarde! Boa tarde! Pode me informar se nesta cidade há algum sebo?  Sim! Por coincidência nesta rua, siga em frente. Fica à direita, a uns cinquenta metros do semáforo. Obrigado! Moço educado aquele. Passa ponte, pé de morro, rua acima, passos largos, grossos pingos de chuva desenhando moedas no asfalto ainda quente, cantando na lataria do carro estacionado “óia os forro ramiado, vai chovê”. Lusco fusco. As primeiras lâmpadas se acendendo. Já avistava as luzes do semáforo, o seu reflexo na pista molhada.
Lá estava o sebo.  

           O sebo é um lugar espetacular. E empoeirado. Achava Alberto que gente fresca nunca deveria ir a um sebo, onde naturalmente se encontrava livros velhos espalhados de forma desorganizada por todo canto. E aquele especialmente tinha certa particularidade: era também café, bar, e ateliê, uma mistura de tudo que tinha ligação com o que ele mais gostava. Puts! Àquela hora da tarde de sexta feira a casa estava cheia. E não de uma gente comum como era de se esperar, eram, na maioria, intelectuais. Gente ligada de algum modo a cultura, pelos fragmentos de conversas colhidos no ar dava para se identificar músicos, escritores, jornalistas, artistas plásticos e outros bichos estranhos. Era uma loja grande, bem iluminada. Algumas estantes no centro abarrotadas de livros as paredes até certa altura recoberta de expositores de livros acima deles afixadas também de forma desorganizada telas maravilhosas. Trabalhos de artistas desconhecidos algumas bem amadoras, outras incrivelmente boas, estilizadas, realistas, impressionistas, expressionistas, uma coisa de doido.  Uma das telas retratava o interior do próprio estabelecimento e podiam-se reconhecer, inclusive, alguns dos freqüentadores. No meio vago ficavam as mesas e cadeiras plásticas.
Havia apenas um atendente e Alberto teve a impressão de que no lugar não havia muitas regras. Todo mundo se sentia em casa. O cliente se servia e ele mesmo anotava em sua ficha o que consumia, talvez o dono tivesse olhos de águia e memória de elefante, ou uma confiança extrema no ser humano, porque estava sempre atendendo a um rato de sebo ou ao telefone ou ao violão cantando uma modinha antiga que os circunstantes já meio bêbados sempre cantavam juntos e às vezes aplaudiam.
Alberto ficou longo tempo encostado no balcão refrigerado, onde as latinhas de cerveja provocavam indecentemente quem ousasse olhar através do vidro.
_Pois não?
Era o tal atendente provavelmente o proprietário. Alberto pensou num termo vendeiro para designá-lo
_gostaria que avaliasse esse livro, disse Alberto tirando da mochila o Ulisses.
O sebista fez uma expreção apaixonada. Não era alegria de garimpeiro diante da burra. Era mesmo alegria de livreiro:
_Um James Joyce com tradução de Houaiss! Era uma exclamação. E ai veio a pergunta: Sabe que há uma nova tradução? De Bernadina da Silveira Pinheiro. _ Ai já era o vendeiro falando.
_Quanto você paga? Vou gastar aqui.
_Não posso pagar mais que vinte.
_Não posso vender por menos de vinte. Dê-me ai uma cerveja.
_Sentou-se numa cadeira plástica perto da porta se sentindo o próprio rei Saul. Lá fora a chuva insistia, muito mansa e muito fria. O asfalto molhado refletia a placa luminosa da fachada. O trânsito já não era tão intenso. Os fachos de luz dos faróis vazavam a cortina de gotículas iridescentes...

             Depois daquele evento não pode deixar de pensar nela, O seu sorriso o seu cabelo, o Seu porte altivo, o jeito de andar, tudo nela era perfeito. Ângela! Pegava-se repetindo esse nome como um adolescente idiota. Precisava se aproximar dela a qualquer custo.  

*Mendigar (gir)
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/02/2012
Alterado em 28/02/2012
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