O coração do homem é chão que ninguém pisa - Cem dias Sem laços – Cap. VIII
O dia nem bem clareara quando os ruídos rotineiros do posto redobraram e ai tornou-se impossível para Alberto conciliar o sono. Surpreendentemente não estava com tanta ressaca como na maioria das manhãs. Ergueu-se da cama de papelão que improvisara num coberto abarrotado de pneus velhos, abrigo que o borracheiro vinte e quatro horas gentilmente lhe cedera. Recolheu a mochila que escondera sob um monte de câmaras de ar, providência que o lugar aberto exigia, e caminhou devagar até o banheiro. No amplo espaço iluminado, com lavatórios de um lado e mictórios afixados na parede oposta dois homens discutiam a insegurança das estradas, via-se que eram caminhoneiros escolados, enquanto ele escovava os dentes eles tentavam inseri-lo no assunto. Na certa viram nele um irmão de estrada, Ele nada comentou, mas aquiesceu com a cabeça sorrindo. Saiu para o ar fresco da manha. Um cheiro agradável de café fresco lhe chegou ás narinas. Instintivamente caminhou até um caminhão de cabine branca, estacionado próximo a uma loja de lonas e sacaria. Era um Volks Wagen 24-250. Contornou a longa carroceria e deparou-se com um homem alto e muito magro, havia ali uma cozinha improvisada com um fogareiro a gás e sobre uma mesa engenhosamente presa à carroceria por dobradiças, um coador de pano suspenso em cima de uma garrafa, ainda emitia uma nuvem de vapor, uma lâmpada alimentada pela bateria do veiculo mostrou o rosto encovado e barbudo do caminhoneiro. Antes que Alberto pudesse esboçar qualquer gesto ele disse com uma voz firme e amigável.
-Nunca falha. O cheiro do meu café sempre traz um convidado, chega aí irmão.
-Obrigado o cheiro está mesmo bom.
O homem pegou duas cadeiras dobráveis e lhe ofereceu uma.
-Me chamo Isac.
-Alberto
Obviamente Isac também estava o vendo como colega de profissão. Alberto serviu-se do café numa xícara esmaltada. Ficou pensando se deveria deixar o homem no engano ou se lhe contava a verdade. Notou também que Isac era muito falador.
-Viagem de muitos dias seu Alberto? Olhando para a mochila que ele tinha colocado no chão entre os pés.
-Muitos dias, seu Isac. Pra ser exato, cem dias.
O outro deu um assovio de surpresa.
- Cem dias programados. Hoje é o de número 70.
-Viva! Precisamos comemorar. Se fosse há uns três meses atrás iríamos tomar uma cachaça.
-É um abstêmio?
Sou e você não é um caminhoneiro.
- Não, mas você pensou que eu fosse.
- Só no primeiro momento. Depois que vi a sua mochila imaginei que fosse um trecheiro. O que pra mim também não muda nada, agora conversando com você acho que é outra coisa.
-E continua sem fazer diferença pra você.
- Nenhuma diferença. “o coração de um homem é terra que ninguém pisa”.
-. “O coração de um homem é terra que ninguém pisa”. Boa! Muito boa!
Alberto pôs a xícara na mesa e pôs-se a procurar algo nos bolsos. Lembrara-se do bloco de notas que ganhara no Sebo. Quando sacou-o do bolso traseiro Isac concluiu.
Você é um desses jornalistas loucos que saem atrás de historias?
Isac era sagas e verdadeiro. Não escondia o que pensava e o que sentia. E sabia pensar e sentir. Sua capacidade de dedução era admirável. Alberto começou a sentir-se muito a vontade com o novo amigo, a não ser por um pequeno porém, ele trazia no peito da camiseta de malha os dizeres, “Eu creio em Deus, E daí?”, mas como ele mesmo tinha dito, o coração de um homem e terra que ninguém pisa...
-Sou mesmo jornalista, seu Isac, mas não sai de casa atrás de matérias. Se bem que as estou encontrando aos montes. Sou casado há muitos anos e minha mulher, assim como você - aproveitou para mostrar a sua capacidade de observação - é cristã e desde que a conhece manifesta o desejo de fazer uma peregrinação nos lugares europeus de veneração católica Eu como sou ateu pedi que ela me liberasse para fazer uma peregrinação do meu jeito...
-E ela?
Ela concordou com duas condições que eu cuidasse de minha saúde e que não tivesse outra mulher.
- É uma mulher sensata! E você aceitou as condições?
- É claro! Pois se estou aqui.
- E tem sido fiel ao acordo?
- Parcialmente
- Como assim?
-Não tive outra mulher, mas não fiquei nem um dia sequer sem me embriagar, não tomo banho todos os dias, não escovo os dentes com freqüência necessária, não me alimento se não achar uma “alma caridosa”, assim como a sua que antes do sol raiar já me deu um café, aliás gostoso como poucos que já tomei. Nossas economias eram uma conta expressiva, em conjunto, de onde ela faz saques freqüentes, eu porém não fiz nenhum saque nesses setenta dias.
- E porque não fez?
- o Deus dela disse que não precisamos nos preocupar com o que comer e o que vestir...
- Como você disse é o Deus dela não o seu
- Sim, mas segundo ela eu também sou criatura d’Ele
- Pelo jeito ele tem cumprido a promessa.
Alberto olhou para Isac com olhos de desânimo. Pena! Era um homem inteligente e instruído. Mas...
-Bom, Isac. Obrigado pelo café! Foi um prazer conversar com você.
-Se estiver indo para o lado da capital. A providência pode aliviar o seu dia, essa frieira está te matando. Seja homem para aceitar uma mão amiga.
Alberto olhou para o homem com um ódio cego. Mas ele sorria de um jeito tão verdadeiro que voltou, encheu outra xícara de café e sentou-se enfezado.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 28/02/2012
Alterado em 18/02/2013