Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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CEM DIAS SEM LAÇOS - Cap. XIV - Cabeça de Fogo (Releitura)
        Alberto caminhou devagar pela estradinha de terra com trechos muito sombreados pelo denso arvoredo. Sentia uma leve tontura se pronunciando e um enorme bem estar físico, resultado talvez do excelente almoço de D. Nívea seguido da bela sesta na rede à sombra deliciosa da mangueira.  Uma grande borboleta azul cruzou a estrada á sua frente num vôo cego e bamboleante, para em seguida se embrenhar de novo da mata fechada, um desperdício de beleza perdida nos recônditos sombrios dos barrancos. Uma cigarra soltou o seu canto estridente numa árvore próxima, primeiro em curtos sons repicados conto quem tenta encontrar a tonalidade adequada, para logo espichar o seu trrriii continuado e monótono. Estradinha comprida! Não pareceu tão longe quando veio de carro com Dr. Lauro, também com aquela sua arenga incessante dá pra se perder a noção do tempo e do espaço. A cigarra calou-se de repente á sua passagem e alçou seu ruidoso vôo pra logo reiniciar o canto noutro ponto da mata. Outra cigarra mais distante também largou a cantiga em forma de nheinhiem num dueto soberbo com aquela primeira. Um lagarto que dormitava numa réstia de sol que se infiltrava pela densa folhagem das copas, largou um tremendo estirão espadanando com a longa calda o tapete de folhas secas, indo sumir-se numa reentrância do barranco donde pendiam grossas raízes de cheiro agradável. Cheiro de umidade, de fecundidade. Cheiro de vida.
        Na medida em que se aproximava da encosta do rio se intensificava o burburinho da floresta. Era a passarada que buscava alimentos nas margens férteis onde abundavam frutos silvestres e pequenos insetos, também já se podia ouvir os roncos dos motores e o sacolejar de carrocerias na BR 262.
        Positivamente estava se amolecendo. De repente dera pra sentir saudade. Imaginou como seria bom ter naquele momento a doce presença de Ângela. Lembrou-se do quanto ela se enternecia com aquelas paisagens bucólicas. Os caminhos distantes serpeando pelas colinas. As pequenas casas dos trabalhadores rurais, vacas ruminando na modorra da tarde à sombra de uma árvore, pequenos currais de tábuas, antigos paióis de telhas curvas meio arriados pelos anos, os tabuleiros das capineiras nas lonjuras dos pastos, em infinitos tons de verde, singelas flores do campo, os ínfimos beija-flores que ela tanto amava, borboletas voando aos pares, libélulas e joaninhas.
       Incrível como aquela doçura que muitas vezes o aborrecia, agora apertava-lhe o coração pela falta. Ângela conversava com as plantas e com os bichos dispensando-lhes um carinho de causar ciúmes. Com a voz em falsete: “Ah! Que fofura de cãozinho é você!” E prosseguia com caricias e sussurros até que a criatura dengosa deitasse no chão se espreguiçando com a barriga pra cima e os olhos revirados. Diabos. Estava com saudade até do cachorro. Essa não!


        Cabeça de Fogo mereceria um capítulo a parte se Alberto resolvesse escrever a narrativa de sua aventura de cem dias. Quando voltou à beira do Pará naquela tarde, com uma inegável vontade de reencontrar o parceiro Sabonete, deparou-se com o homem ruivo estirado à sombra da ponte, exatamente onde estivera pela manhã quando conheceu Dr. Lauro. O estranho o cumprimentou expansivamente, mostrando-se ansioso, por uma boa prosa. Apresentou-se com naturalidade com o cômico apelido do pássaro comum nos capinzais de Minas e São Paulo – Pode crer, ele disse, não é por causa da lenda da assombração cabeça de fogo, é por causa do pássaro topetudo.
        Como outros tantos que conheceu no trecho, Cabeça de Fogo também tinha aquela necessidade incontrolável de falar. Era sempre aquele monólogo sem exigência de participação do interlocutor, como se os pensamentos e lembranças repisados em horas e horas de solidão carecessem sopitar como as lavas incandescentes num vulcão ativo.
        _ Sabe? Sai de casa aos dezessete anos. Nem sei quantos anos faz isso. Rodei e rodei. Hoje tanto faz estar aqui como ali. Em qualquer lugar onde a noite me apanhar eu estou em casa. Trabalhar? Não senhor. Não é pra mim. Gosto muito é de conhecer as coisas. Tenho sede disso, coisas novas, coisas velhas de que eu não tenha ainda conhecimento, é disso que estou atrás. Mas... Trabalhar não. Está por fora. Trabalhei na minha adolescência sim. Meio que forçado por meu pai. Ele tinha um chavão: “o trabalho dignifica o homem.” Mas eu não conseguia ver dignidade no velho que apesar de trabalhar tanto não conseguia dar à sua família o mínimo de conforto. Quanto mais trabalhávamos, mais pobres ficávamos, até que ele morreu, seco de tanto trabalhar, afundado nas dívidas. Deixou-nos uma ridícula pensão com a qual minha mãe deve estar se virando até hoje. Tivemos que mendigar para pagar o funeral daquele digno trabalhador brasileiro. Saí do cemitério com essa promessa: nunca mais trabalharei na minha vida...
        Alberto havia se sentado de frente para o estranho exemplar humano. Ouvia com certa atenção ao seu discurso anti trabalhista, embora tenha percebido que para o outro era indiferente que estivesse ou não interessado.
        _ Imagine que quando o Rei Davi rogou uma praga sobre Joab por este haver matado Abner, ele disse: “Que o sangue de Abner caia sobre a cabeça de Joab e de toda a sua família! Não faltem jamais em sua casa homens atacados de sarna ou lepra, que trabalhem assalariados, caiam pela espada, definhem de fome!*” Veja bem que para o Rei Davi, trabalhar de empregado era flagelo que figurava entre os piores. Não trabalho há muitos anos e não me faz falta. Vivo com o que a natureza me dá. E vou lhe dizer uma grande verdade: em todos esses anos no trecho já passei muita dificuldade. Já passei frio, tomei muita chuva no lombo e sol quente na moleira, mas fome nunca passei. Se não se acha por aí uma alma caridosa que nos mate a fome por esses matos se acha muitas espécies vegetais nutritivas e boas para o consumo. Trabalhar, meu amigo. É Nunca!
        Cabeça de Fogo ergueu-se de repente como que impelido por uma força estranha, apanhou o saco de estopa, sua bagagem, que até bem há pouco lhe servia de travesseiro, ajeitou o boné sobre os cabelos vermelhos e subiu o pequeno aclive que levava à BR. Seguiu seu caminho sem dizer mais palavra.
        Alberto concluiu que ele tinha sérios problemas mentais. De certa forma sentiu-se aliviado pela partida do outro. Falava demais!
*II Sm 3, 29
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/10/2013
Alterado em 18/10/2013
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