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CEM DIAS SEM LAÇO - Cap XVII - Reflexões vespertinas
Padre Clemente revia cuidadosamente suas notas para a homilia que faria na missa das sete. Tinha uma reunião com a pastoral litúrgica às 18h e até lá estava com o tempo livre. Apesar de seguro do que ia falar a seus paroquianos, queria dar ainda um último apanhado no assunto. D. Pipa entrou no seu andar leve não obstante pesasse quase cem quilos. Acostumara-se a caminhar pela casa sem fazer ruídos, sobretudo quanto passava próximo ao gabinete do reverendo. Sabia que não devia tirar a sua concentração. Na bandeja, com o café recém passado vinha também a edição de sábado do Lanterna das Gerais, onde publicava uma coluna. Pedira ao editor aquele espaço ao deparar-se com uma série de artigos agressivos de um jovem jornalista ateu que vez ou outra destilava uma enxurrada de palavras ácidas contra os costumes cristãos. Não queria de forma alguma afrontar o jovem com debates inúteis. Afinal Jesus prometeu que as portas do inferno não prevalecerão contra sua Igreja, mas como padre sentia-se no dever de levar a mensagem do Evangelho às criaturas por todos os meios possíveis. Ainda mais num veículo que dava espaço a um inimigo do Senhor. A bondosa galega depositou a bandeja sobre a escrivaninha, ao alcance da mão do padre e afastou-se. Tão silente como entrou.
Padre Clemente serviu-se de café e abriu o jornal. Apenas correu os olhos pelas manchetes sem muita vontade. O mundo às vezes era fastidioso. Noticias do cotidiano eram maçantes. Repetitivas. Os políticos sempre incorriam nos mesmos erros e falcatruas. Só os nomes é que mudavam. Gráficos e relatórios com um jeito de embromação. Seria mesmo verdade que as pessoas acreditavam naqueles números? Crimes eram a matéria prima dos jornais. Incapacidade das autoridades de resolverem questões sociais aparentemente simples. Lá estava na terceira página a foto do delegado Nunes soltando os cachorros em cima do Governador do Estado que não se posicionava em favor da Segurança Pública no município. Contra o prefeito, Dr Pereira Fontes, ele era mais sutil, falava um pouco das dificuldades que o “chefe do executivo” enfrentava, massageava-lhe o ego falando superficialmente de suas boas intenções para depois sentar-lhe a poda com verdades contundentes. Provavelmente aquele néscio cheio de empáfia leria somente o início do depoimento do intrépido delegado. Bom menino aquele Benito Nunes! Jovem ainda. Teria uns trinta anos, trinta e dois no máximo. Inteligência viva. Olhos acesos, perscrutadores. Discorria com incrível autoridade sobre qualquer assunto que se lançasse na roda de prosa, naqueles serões sabatinos em casa de Miguel. Era por causa de paroquianos como ele e sua senhora, D. Ester, e tantos outros de inteligência brilhante como o próprio Miguel e família que se preparava tanto para seus sermões... E nesse ponto de suas reflexões o rosto redondo de Padre Clemente se abria num largo sorriso. O mundo ainda estava cheio de pessoas santas. Que passavam pela vida enfrentando os reveses de cabeça erguida e com louvores nos lábios, sem deixarem se afetar pelo estado de putrefação em que se encontram os ditames morais do nosso tempo.
Ergueu-se caminhou até a janela ainda pensando e seus paroquianos mais chegados. Era uma tarde quente, mas àquela hora havia uma brisa fresca que balançava levemente os ramos floridos do pé de manacás espalhando o seu agradável perfume pelas imediações. Fazia uma lista mental dos que levavam a religião a sério e sentia-se otimista com relação à Igreja que tanto amava. Adquirira desde menino, sugestionado por um velho tio padre, a comparar as pessoas a personagens bíblicos. A idéia do tio era levá-lo a ter um olhar benevolente para com as pessoas associando-as aos santos, evitando assim os maus julgamentos. Não funcionou com o pequeno Clemente, porque ele logo começou a encontrar também muitos vilões nas páginas sagradas. Quando a menina do Miguel era ainda adolescente gostava de fazer a mesma brincadeira com ela. Ângela ficou boa nessas comparações. Até hoje eles, volta e meia, trocavam idéias bem humoradas sobre o assunto.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 20/10/2013
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