Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Canela de pedreiro
“Eu queria contar as histórias de Minas pros brasileiros do Brasil...” (Mário de Andrade - Clã de jabuti)

-Senhores homens!
É cumprimento, aliás usual em certa região de Minas, certamente lugar de origem do sujeito. Os cincurtantes  respodem um opa! uníssono.
É um homem negro, alto e magro, é calvo e tem a barba crescida, muito preta e muito cheia, veste uma camisa branca de botões, bermudão estampado e chinelões de borracha. Recosta-se no balcão, está alegre e expansivo. Afinal é sábado e ele acaba de encerrar uma dura semana de trabalho na obra. Passou em casa, tomou um banho e agora está aqui para tomar uma.
_ É bem pra abrir o apetite do almoço. Ele informa.
Gosto desses tipos. São brasileiros que trazem consigo uma canga cultural riquíssima, um linguajar próprio, particular, carregado de adágios, uma hombridade quase que natural legado ovoengo e paterno, um jeito impertérrito de arrastar o lesco-lesco e, a despeito de sua rusticidade ainda são dados a poesia.
O vendeiro, ou melhor, o botequineiro, ao que vejo um seu coetâneo, com um palito no canto da boca e um pano de prato jogado sobre o ombro esquerdo, serve-lhe generosa dose de cachaça.
   _ Não me sinto à vontade quando não tenho pelo menos duas bichanas na carteira.
   Por bichana ele quer referir-se à cédula cinqüenta reais, com tal conversa não sei se está só sendo fanfarrão ou está arranjando uma maneira de pedir fiado. Parece que o homem do balcão também entendeu assim pois está respondendo:
   _ Estamos em casa compadre. Cê não vai deixar de beber sua cachaça por falta de cobre.
   _ Não. Não é isso. Ainda tenho uma rebarba. Eu tô só dizendo que a firma atrasou o pagamento. Com essa história toda de crise os patrões aproveitam o pau envergado. Mas eu falei pro chefe, ali na cara dele, ”onde se quebra o pote é que se procura a rodilha.” Ora! O quê que ele tá pensando, só?
   Fala com gestos largos dos braços ossudos como a envolver os demais presentes no assunto. Ninguém entra na conversa. Ele observa a estufa. Está vazia.
   _ Uai, compadre! Cadê os tira-gosto?
O outro se desculpa, explicando que teve um probleminha doméstico que o impediu de preparar os pitéus, mas que já vai providenciar.
   O copo de cachaça continua sobre o balcão. O freguês observa as prateleiras.
   _ Estou  vendo que o compadre tem ali um pente de ovos. Me arranja um.
   _ Estão crus, compadre.
   _ Não faz diferença pra mim. Dê cá um.
   O botequeiro faz uma cara de incredulidade, mas atende ao freguês que segura o ovo agora com a mão esquerda e toma o copo com a outra mão. Fica assim postado rente ao balcão e falando sem parar.
   _ Sou um homem que jamais passei fome na vida. Como de tudo que me ofereçam. Comigo não tem frescura.
   Todos os olhos estão voltados para ele. Expectantes. Que diabos ele vai aprontar? Penso: Que excelente quebra-gelo para o início de uma palestra! Isso é que é prender a atenção .
   _ Não conheço alimento que meu paladar repugne, seja ele amargo, picante, azedo ou doce.
   E nada de beber a cachaça.
   _ Sofre muito uma pessoa exigente com comida, sô. Lá em casa vez em quando um moleque ou outro cisma de refugar comida. Isso me deixa enfezado, dou um espalho danado na turma. Onde já se viu?!
   De súbito emborca o copo, mandando pra dentro num sorvo só a cachaça, repõe o copo no balcão fazendo uma careta que desmentia sua propalada tolerância aos sabores agressivos, bate o ovo na quina da estufa,ouve-se o estalo da casca se quebrando, inclina exageradamente a cabeça para trás abrindo a boca quanto possível, com os polegares abre a casca partida no rumo da boca, o conteúdo desce de uma vez goela abaixo, apenas um fio de clara escorre-lhe pela barba que ele limpa grosseiramente com a mão.
   _ Esse tava meio derrancado, compadre. Dê cá outro pra acabar com o gosto do ranço.
   _ Ora compadre, são da mesma época.
   _ Mas não devem ser da mesma galinha.
     Tomou de outro ovo, repetiu o procedimento.
   _ Esse tava melhor. Dê cá agora uma cerveja do  tipo canela de pedreiro.
O comerciante traz a garrafa segurando-a pelo bico, está de fato gelada ao ponto em que a gente chama de “vestida de noiva”. Todos os presentes dirigem os olhos para as canelas do homem que estão esbranquiçadas pela ação do cimento. Ele comenta imperturbável, esticando para frente uma das pernas:
   _ Nem sebo de vaca dá jeito nisso, senhores homens.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 11/04/2015
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