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A verruma
A verruma
Contou-me este caso para ilustrar uma de suas posições quanto o mau procedimento alheio, naquele caso específico, a sovinice de um seu vizinho que “não comia banana pra não jogar fora a casca”. Rio-me dessa sua alocução, hoje que aprendi a fazer uma deliciosa farofa de certos rejeitos da cozinha como cascas e talos diversos, mas naquele tempo parecia-me pleno de sentido o seu dito. Vamos ao caso.
Um fazendeiro abastado, mas muito avaro tinha a seu serviço um carpinteiro que lhe era de muita valia. Havia anos lhe servia o agregado. Quase tudo o que era mobília, carros de bois, carroças, porteiras, o próprio engenho e os travamentos dos celeiros tinham passado por suas mãos habilidosas. Veio o pobre trabalhador a enviuvar-se e, não tendo com quem deixar a filha pequena, passou a levar a criança consigo para o trabalho. Era uma criança bem comportada, ali pelos seus seis anos, cuja presença em nada atrapalhava a rotina do empregado, por isso o patrão, no início não se incomodou com aquilo, mas com o tempo observou um pequeno inconveniente: a menina também tinha que almoçar, era uma boca a mais, ora! E isso significava, ainda que irrisória, uma despesa.
Pôs-se o avarento a matutar. Tinha que dar um jeito de eliminar aquele gasto extra. Não tem nada perfeito no mundo. Vejam só: seu melhor empregado, aquele que nunca lhe ocasionara a menor contrariedade, agora arrumava-lhe aquele embaraço, a menina sempre grudada nele feito um apêndice. E comia, a danadinha! Deu até de engordar um pouco com a melhora do repasto. Caçava assim ocasião de abordar a delicada matéria com o carpinteiro.
Numa tarde em que o operário metia o trado num frontão de jacarandá cuidadosamente montado sobre cavaletes no amplo coberto da carpintaria, o patrão achou de ser hora de tocar no assunto, aproximou-se sorrateiro, a guria a um canto brincava de empilhar pequenos cubos de madeira. Sentou-se num velho caixote e ficou a observar o empregado fazer o seu trabalho, afetando indiferença à sua presença. Os braços musculosos girando o trado e a verruma abrindo caminho da madeira de lei. Tomou coragem e entrou no assunto:
— Tem mesmo que trazer a menina para o trabalho todos os dias?
O outro reverteu o giro do trado e veio trazendo a verruma de volta. Esta havia superaquecido no atrito com a madeira e queimava partículas de serragem levantando fumaça e fazendo rescender o forte cheiro característico:
— Sim. Tenho.
— Por que?
De tão óbvia a resposta, a pergunta era ridícula. O Carpinteiro retirou da madeira a broca fumegante e aproximou-a da cara do patrão:
— Porque é na língua dela que esfrio a verruma quando ela ferve assim. Se o senhor quiser cumprir essa função eu a dispenso.
O fazendeiro lembrou-se de que estava atrasado para um compromisso.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 13/03/2017