Textos
A vítima
A vítima
É tão atormentado o meu sono que só a custo percebo que a campainha do telefone é real e não uma fantasia da minha mente cansada. Ergo-me de supetão ao atinar com a realidade. Apanho o celular num gesto mecânico pra concluir imediatamente que não é ele que toca. A campainha insiste, calço os chinelos e arrasto o corpo estremunhado até a sala onde o telefone fixo está instalado, sem acender a luz pra não incomodar ninguém, esbarrando aqui e ali.
_ Alô!
_ Alô! Pedro? É Cabo Vidigal. Desculpa ligar a essa hora, cara! Não teve outro jeito. O preso não toma a porcaria do remédio. Insiste em falar com você.
É o que me faltava. O relógio digital sobre a estante marca 1h14. Vontade doida de mandar tudo às favas. Que conta tenho eu com tudo isso afinal? Mas lembro-me do preso, a única vítima nessa história toda...
_ Alô! Pedro? Tá me ouvindo?
_ Positivo. Tô indo praí.
Aviso a mulher que vou acender a luz do quarto. Ela puxa o cobertor cobrindo a cabeça! Também está cansada e com sono, mas encontra coragem pra me recriminar. Sempre começava o falatório com o mesmo chavão: “Não te falo mais nada.” Mas continuava falando: “Esse seu emprego vai acabar com você. Você não descansa, não tem sossego, trabalha vinte e quatro horas por dia”...
Sei o discurso de cor até esse ponto. É o tempo que sempre gasto pra me vestir. Sei que sua preocupação é justa e as queixas legítimas, mas sinceramente em nada me ajudam. Vou até a cozinha, tomo um gole de café frio e saio para a noite morna...
Enquanto os faróis da Kombi rompem o negrume vou remoendo os fatos. O preso é Tião, morador de rua que teve um surto psicótico e a única solução que as autoridades municipais encontraram para o caso foi trancafiá-lo, o que agravou o problema. Agora sou chamado muitas vezes a ministrar-lhe a medicação paliativa, mais pra sossego da segurança e dos outros presos do que para o bem estar do doente. Posso simplesmente ignorar o chamado e mandar tudo pro inferno, mas quando penso que talvez eu seja a única pessoa com quem ele pode contar nesse momento, me desarmo todo.
A pequena cadeia é antiga e mal iluminada, as celas exíguas e malcheirosas, a do Tião é a pior de todas, construída debaixo de uma escada para aproveitar o espaço. O escarcéu é medonho. O louco tem o aspecto assustador de uma fera enjaulada de pouco e os demais presos incomodados com o barulho provocado pelo doente gritam e sacodem as portas das grades ou batem copos plásticos e outros objetos. Os dois policiais de plantão me recebem com visível alívio. Sigo pelo corredor estreito entre as grades rezando para não ser agredido, o que não seria a primeira vez.
Tião me olha com os olhos acesos e expressão demoníaca. Os outros presos me recebem com palavrões irreproduzíveis, como se eu fosse o responsável pelo seu companheiro de cárcere, motivo do desassossego. Levo intermináveis quinze minutos negociando com o louco a ingestão das pílulas sossega-leão:
_ Tomo se trouxer pra mim uma camisa com a estampa de São Geraldo Magela.
_ Trago amanhã.
Prometeria qualquer coisa.
Toma o remédio me ameaçando de morte caso não cumpra a promessa. Penso em aguardar uns minutinhos até que se acalme, mas sou atingido nas costas por um copo de urina quente. Sinto o liquido morno empapando a minha camisa, escorrendo para dentro das minhas calças. Há uma gargalhada geral e aplausos ao autor do atentado.
Tião não ri. Nem aplaude. Olha-me compadecido, a beatitude invadindo sua cara barbada.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 24/03/2017