Textos
Cachorro que enjeita linguiça
Ficou com o olhar perdido na estrada de terra que se adentrava pelas pastagens distantes. Olhos azuis sob as sobrancelhas hirsutas já com a súcia atrevida de fios brancos dominando quase que totalmente os pretos originais. Escarafunchava no velho surrão da memória um caso que nos fosse apresentável como novo, que não houvesse risco de que algum dos circunstantes já o tivesse ouvido. Da mesma forma que execrava as conjeturas, também detestava as patranhadas que vez ou outras saíam naquelas rodas de prosa, bem como lhe desgostavam as novidades batidas feito jornais da semana passada. Ninguém tinha pressa. Poderia pensar o tempo que quisesse. Sabiam que quando se animasse sairia com uma boa história, e as suas eram quase sempre verídicas e por ele mesmo protagonizadas, o que as tornavam ainda mais excitantes.
Era daqueles contadores de casos de quem o destino não faz grandes escritores por não verificar neles intimidade com a pena, entretanto sabem colher nos mais insignificantes acontecimentos, material para contos de valor, que pegam uma cena simples do cotidiano e a vão modelando com o seu natural talento até que que tomam corpo, mais ainda valorizada pela maneira prodigiosa em que é feita a narrativa.
Pois naquela tarde o velho sitiante, sentado no banco de madeira tosca, espichou a perna para retirar do bolso o relógio preso à presilha da calça por uma corrente de ouro. Via-se que estava sem inspiração pela demora pouco usual, e a lentidão com que levantou a tampinha prateada e conferiu no mostrador a posição dos ponteiros. Baixou novamente a tampa, mas encolheu a perna sem guardar o relógio que manteve na mão e todos presumiram que ele contaria algo alusivo ao objeto.
“Vocês se lembram de um talhão de cana que eu tinha plantado na cabeceira da roça. Andei consumindo parte no trato da criação, mas foi ano de boas chuvas e vi que era peta aquela trabalheira toda já que os pastos eram bons, então acabei largando de mão a coisa. Foi ficando lá o pequeno canavial e um dia mandei oferece-lo de graça a meu sobrinho Zé Floriano que vende garapa na feira. Mostrou-se alegre com a doação, mas o tempo foi passando e ele não se animava a colher a cana, e eu cá com desejo de desocupar a terra. Foi numa tarde como essa eu estava aqui neste banco apreciando um café e fumando o meu palheiro quando apontou lá na estrada um cavaleiro. Vinha numa marcha picada, num cavalinho pedrês. Parou na porteira, apeou e amarrou o animal no batente, quando deu boas tardes conheci que era Manezim Catireiro.”
“A meu convite ele sentou-se, aceitou um café e enrolou um pito. Só então entrou no assunto. Perguntou se eu não dispunha da moita de cana e eu respondi que sim. Tirou então do bolso este relógio e me ofereceu em troca. Tinha negócio para cana com um fabricante de cachaça. Aceitei na hora. Ele ficou satisfeito e no dia seguinte colheu o canavial.”
“Dias depois ele voltou contrafeito, tinha sabido pelo Zé Floriano que eu estava disposto a doar a cana. Eu confirmei. Ele questionou. Sentia-se injustiçado por que aceitei o relógio. Então eu disse: ora, foi você quem propôs o negócio. Eu só aceitei.”
“E conferindo as horas completei: cachorro que enjeita linguiça, pau nele.”
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 16/08/2017