Assim são as pessoas
O compadre, enquanto falava, agitava freneticamente o braço livre, enorme, coberto de sardas e de pelos louros eriçados, o outro braço sustinha a lata de milho na qual, a intervalos entre um impropério e outro, enchia a mão e espalhava pelo terreiro, rindo às vezes, entre os parênteses que abria no meio da sua irritação, da algazarra que as galinhas aprontavam ao seu redor. Xingava o governo, a igreja, a associação de moradores do bairro, os correios, os bancos, a “péia” dos times mineiros, a porcaria da seleção olímpica de futebol. Parecia ter birra de qualquer instituição. “E o povo brasileiro engolindo tudo pacificamente, de boca aberta feito besta,” dizia como se não fizesse parte do povo. “O máximo que consegue como reação é fazer piadinhas da sua própria miséria”...
A indignação estéril do compadre lhe recordava o Capitão Vitorino, o Papa-rabo de “Fogo morto”. Pensava que se relesse a obra, emprestaria inevitavelmente ao Dom Quixote sertanejo de José Lins do Rego a figura do amigo. Ria-se sem argumentos diante da enxurrada de assuntos que o outro vertia prodigamente que, por sorte, também não espera interação de seus interlocutores, não era de seu costume dar brechas para comentários ou opiniões que podiam vir contra suas ideias. Como de tempos para cá desenvolvera uma preguiça sem tamanho das discussões inúteis, até que ficava numa posição confortável diante de tal situação. Admirava com força quem tinha coragem de defender uma bandeira, um partido, uma ideologia, uma doutrina. Já dizia Rui Barbosa: “em todas as crenças de partido, em todos os sistemas, em todas as teorias, há um fundo verdadeiro com acessórios falsos, ou um fundo errôneo com acessórios justos”.
O compadre agora caía de pau em cima do povo brasileiro, que aceita tudo calado, que paga o absurdo em impostos e não cobra retorno, que engole a vergonhosa “indústria da multa” instalada no estado, que vive subjugado feito gado manso. Cá na sua quietude ia criando imagens para ilustrar a fala do amigo. Pensava na pulga “amestrada”, que na verdade, cansara-se de saltar e dar com a tampa do recipiente que a aprisionava e para de saltar mesmo quando a tampa é retirada. Também o caso do pato que era colocado sobre uma chapa quente enquanto se tocava determinada música dançante, o palmípede ficava saltitando desajeitadamente como se dançasse, tantas vezes passou por aquela situação que depois era só ouvir a tal música para começar a dançar... Achava que era assim que o compadre via o povo brasileiro.
Pensava no “celebre experimentum mirabile de imaginatione gallinae” descrito pelo Dr Hans, o burlesco personagem do jornalista e escritor Pedro Cavalcanti, no seu romance “Em nome do Pai”, quando pela primeira vez naquela tarde o compadre lhe deu direito à palavra, inquirindo-lhe sobre o povo brasileiro. Não respondeu com palavras. Ergueu-se, pegou uma das galinhas que se pôs a gritar, debatendo-se desesperadamente, poucos segundos durou a reação da ave que percebendo a inutilidade do seu esforço aquietou-se. Ele então a colocou no chão segurando-a com os pés para trás, o peito e a cabeça no chão, o bico esticado para frente, a partir do qual traçou um risco no chão de cerca de 50 centímetros. Soltou então a galinha que permaneceu ali imóvel, detida por aquela prisão imaginária. O compadre assistia a tudo calado. Apenas uma ruga de interrogação vincava-lhe a testa larga. Passados alguns segundos, bateu palmas. A galinha saiu correndo, juntou-se às outras e voltou a comer milho.
O compadre ainda o olhava interrogativo. Ele então arrematou evasivamente:
_ “Assim são as pessoas, como são as criaturas”, meu compadre!
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 18/08/2017