Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Textos
Brinquedos improvisados
Conhecia cada espécie de planta ou de bicho pelo menos pelo seu nome popular. Curioso como sempre fui, não perdia a oportunidade de aprender. Queria saber o nome de cada inseto, cada ave, cada animalzinho roedor que nos cruzasse o caminho. Isso pra não falar das flores, da enorme variedade de plantas que se aglutinavam nas vastas florestas de troncos esguios ou retorcidos, no emaranhado de cipós e nos capinzais que se espraiavam pelas clareiras. Assombrava-me o assovio do vento nos cambaubais que por aqueles tempos abundavam por estes lados. A cambaúba é planta renhida feito brasileiro pobre, que nasce e teima em crescer no campo árido e cascalhento. Cada haste cresce irmanada com milhares de outras, por isso sobrevive, mas cresce mirrada, Pernalonga e com ramagem escassa, buscando a luz entre as outras.  Naquele tempo, nas suas mãos habilidosas, a cambaúba ainda tinha muita utilidade fornecendo matéria prima para peneiras, chapéus e outros utensílios como gaiolas, alçapões e eteceteras. Também seu caule seco dava excelentes archotes quando minguava o querosene das lamparinas.  
Ele ia satisfazendo com sua ilimitada paciência a minha insaciável sede de conhecimento. Ensinando o nome e a utilidade de cada coisa. Para ele nada do que fora criado era dispensável. Passando pela roça de milho recém-colhida apanhava uma cana de milho seca já destinada a virar adubo, enquanto caminhava comigo estrada afora, eu sempre na marcha trotada dos dois passos de parelha e três correndo atrás, limpava-a pacientemente das folhas e cascas e com o canivete aplicava-lhe cortes estratégicos que meus olhos curiosos acompanhavam. De repente a insignificante cana seca adquiria uma cabeça de cavalo, ora com as orelhas para cima, ora com as orelhas para a frente. Um formidável cavalo de pau.
Quantas vezes diante de um fio de água corrente ele construiu a partir de um pequeno gomo de rama de mandioca uma roda d’água que ele instalava com duas pequenas forquilhas e imediatamente punha-se a girar com extrema precisão. Outras vezes era a miniatura de um monjolo esculpido num pendão seco de piteira que ficava lá na pequena vertente dando suas pancadinhas inofensivas. Eu perguntava com inocência: até quando eles vão funcionar? Ele respondia com propriedade: até apodrecerem ou até vir uma enchente e os levar. Depois em casa nas minhas horas vazias de menino solitário eu ficava a imaginar se meus brinquedos ainda existiam trabalhando para o nada e era acometido de um cruciante sentimento de pesar.
Numa daquelas nossas caminhadas pela longa estrada de terra vermelha que serpeava entre restingas e capões fechados, em certo momento passando por um tucho de varas, um arbusto específico cujo nome me escapa completamente, eram varas finas e alongadas com um grau mínimo de diminuição de circunferência do pé para a ponta. Ele agachou, e com o canivete apanhou uma das varas separando um pedaço do tamanho de um palmo, um cilindro perfeito, passou a bater com a lâmina em prancha do canivete na casca do pequeno bastão. Insistiu demoradamente naquela ocupação enquanto seguia no seu passo constante, até que a casca se soltou do caule. Assim, canudo e bastão, com mais alguns cortes de canivete criou um instrumento musical, que emitia notas originadas a partir do sopro e da movimentação de uma peça por dentro da outra.
Brinquei com o instrumento aborígene por toda a manhã enquanto o velho artífice garantia, com sua arte pouco reconhecida, o pão nosso de cada dia. Mas com a chegada da tarde o calor murchou as peças e o instrumento perdeu irremediavelmente a afinação.
Das lições daquele dia a que ficou mais fundamente gravada foi a da efemeridade das alegrias desta vida.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/09/2017
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