A pequena intocável
Naquele tempo eu não sabia quase nada da vida, minha tenra idade não poderia supor quão dorido pode ser o amor nem quão afável pode ser a lembrança de uma primeira afeição. Como é que aos seis anos e vivendo na pequenina cidade do interior, longe dos grandes centros culturais, eu poderia vir a saber o que queria dizer a expressão tsigane, que evoluíra de atsigan que, por sua vez, havia evoluído do grego athinganoi, que definia a incomunicabilidade que existia entre um determinado povo e os demais? Tudo o que eu podia entender era o que meus sentidos infantis podiam captar e minha mente limitada processar a partir das distorcidas informações colhidas.
Chegaram numa tarde de sol, em suas grandes caminhonetes e se acamparam no grande largo gramado, em poucas horas estavam instalados em suas barracas coloridas montadas num semicírculo ao centro do qual uma enorme tenda aberta, espaço comum a todo o grupo. A janela de minha casa, de onde passei a tarde observando o ágil trabalho de montagem do acampamento, ficava num lugar privilegiado e foi daquele posto de observação que assisti ao primeiro jantar comunitário daquela estranha gente de linguagem ininteligível. Eram de estatura média, a pele de cor olivácea, olhos e cabelos muito negros e uma qualidade em comum: eram festeiros. Todas as noites depois do jantar, cantavam e dançavam ao som de violinos, marcando o compasso com palmas animadas, as mulheres fazendo esvoaçar pelo recinto, muito iluminado por lampiões a gás, seus vestidos longos e coloridos. Entre elas uma linda garotinha que sempre executava um número individual muito aplaudido.
Outros grupos haviam passado pela cidade e não deixaram boa impressão. Chegavam de charretes escangalhadas puxadas por animais estropiados, estavam sempre muito sujos. Eram deveras encardidos desde suas roupas paupérrimas até as feias barracas de encerado pardo coberto de remendos mal feitos. Quando chegavam, a população se precavia. Havia uma crença de que roubavam e ludibriavam quem com eles se arriscavam a negociar.
O Benedito Castanha, curioso e já meio mamado perguntava ao entendido bodegueiro Militão:
_ E que língua esquisita é aquela, Sô?
_ Bão! Aí eu não tô bem certo. Pode ser o romany, a língua mesma cigana, ou o prakiti, um dialeto hindu da casta Domba. Essa gente tem uma procedência muito duvidosa. Na Espanha são conhecidos por Gitanos, termo que vem de Egiptanos, surgido de uma crença de que são originários do Egito, mas estudos dão conta de que vieram da Índia.
Seu Militão da Bodega, metido a erudito citava Cervantes nas rodas de conversa vespertinas: “Sua profissão é a mentira. ” E emendava com ar de bom conhecedor: “mas há uma lei entre eles. Não roubam ninguém... mais pobre”. É que nunca se via eles trabalharem, os homens ficavam estirados nas redes durante o dia enquanto as mulheres praticavam a quiromancia pelas ruas, quando não mendigavam. À tarde quando elas voltavam de sua questionada ocupação, os homens montavam em seus cavalos e saíam pela cidade a propor barganhas.
Mas aqueles que ali estavam acampados eram diferentes. De dia os homens se reuniam na tenda aberta e malhavam o cobre na confecção de tachos muito apreciados pelas donas de casa da cidade, que os disputavam e muitas vezes os encomendavam sob medida. As mulheres, sempre bem vestidas e muito enfeitadas de ornamentos metálicos, com seus longos cabelos negros que enlouqueciam os pobres homens moradores locais e botavam uma pontinha de inveja na mulherada que, no entanto, rendiam-se ao fascínio exercido por aqueles misteriosos espécimes humanos. Elas também praticavam a quiromancia, mas não mendigavam. Permaneceram muitas semanas na cidade sem que houvesse uma única queixa de quem quer que seja da conduta de qualquer membro do grupo.
Não cheguei a trocar uma palavra sequer com a linda garotinha cigana, mas ficou-me na lembrança suas evoluções alegres pela grande tenda naqueles serões festivos.
Certa noite um forte temporal desabou sobre a cidade, o Ribeirão Fartura assumiu repentinamente proporções inimagináveis para quem o conhece hoje na sua triste insignificância, a enchente alcançou o acampamento do simpático grupo de ciganos que derrubaram as barracas sobre os pertences e se abrigaram nas casas vizinhas, assisti com muita pena toda aquela movimentação.
Foi a última vez que vi a pequena intocável. Com os cabelos molhados, correndo na chuva, puxada pela mão por uma cigana idosa com jeito de matriarca.
Do meu livro homônimo, mais recente lançamento
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 05/09/2017
Alterado em 05/09/2017