Quem tem medo de carestia?
Até os dez anos, vivi numa casa muito pobre. Nem tínhamos energia elétrica, o que só fomos conquistar quando recebemos a visita de um candidato à caça de votos, comoveu-se com aquela situação e resolveu, sem nenhum interesse, presentear-nos com um padrão CEMIG, cuja aquisição era a nossa dificuldade. A cidade naquele tempo era um quase nada. As ruas, nem sei se tinham nomes, pois eram chamadas de Rua de Cima, Rua de Baixo, Rua do Meio, Rua da Várzea, Morro do Cristóvão. A Fartura e a Pedreira são testemunhas disso.
Morávamos na Praça do Brandão, hoje Praça Mário Ernesto da Silva, e mesmo por lá alguns vizinhos já tinham “água dentro de casa”, expressão que significava ter uma pia na cozinha e banheiro com chuveiro, um luxo naquele tempo, a maioria da população tinha a tradicional casinha no fundo do quintal. As famílias de melhor situação financeira iam aos pouco se livrando dessas precariedades e melhorando as moradias. Chique mesmo era o “piso de vermelhão”. Tratava-se pavimentação queimada a colher de pedreiro, com cimento pigmentado de vermelho. Foi um sucesso até surgir o “vermelhão amarelo”.
Em nossa casa tínhamos piso de chão batido, fogão de lenha no pequeno coberto do terreiro e ferro de passar a brasa. Utensílios rudimentares como cuias, potes de barro e gamelas eram comuns. Parece incrível! Tínhamos o necessário. Mesmo vivendo na miséria os adultos de toda a nossa vizinhança viviam assombrados com a possibilidade de uma crise, como se as coisas pudessem piorar ainda mais. Soube por acaso que durante os anos de 1968 a 1973 a economia do Brasil teve um crescimento de “proporções chinesas”, com média anual de 11%, chegando, num daqueles anos, a crescer 14%, talvez o fato que se segue tenha se dado logo depois dessa fase quando as taxas começavam a cair alarmando os pobres viventes da nossa pequena cidade.
Numa tarde meu pai foi, depois do jantar, como era seu costume, sentar-se à beira da rua, eu gostava de sentar-me com ele e acompanhar os debates que sempre ocorriam entre ele e seus amigos. O assunto daquele dia, que eu acompanhava de olhos arregalados, girava em torno de uma coisa terrível que estava por vir. Eu não fazia a menor ideia de como seria aquela coisa, mas minha limitada percepção infantil supunha um monstro do tipo daquele do quadro de São Jorge, porque era capaz de meter medo naqueles homens ali sentados. Até o nome da coisa era feio: Carestia.
Discutiam exaltados. Eu não conseguia entender pela argumentação de cada um, se a vinda do monstro Carestia era culpa de um certo Garrastazu ou se aquele tal sujeito de nome esquisito é quem iria espantar o bicho. Os homens se dividiam quanto a isso.
O tempo passou e se é que o tal monstro que tanto aterrorizava meu pai e seus amigos realmente veio, eu não cheguei a vê-lo. Também eu era muito criança e devo ter sido poupado. O Gal. Emílio Garrastazu Médici eu conheci nos livros de História, sem elmo, sem bigode e sem cavalo branco. Em vez da carestia eu vi minha cidade crescer e progredir. Meu pai veio a falecer duas décadas depois numa situação relativamente confortável, com “agua dentro de casa” e outras comodidades que a modernidade pode oferecer, deixando-me um legado de confiança em Deus e no próximo.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 12/09/2017