Textos
O Zé é porque é
Este meu ídolo não tem os pés de argila como tantos outros que já tive e que hoje compõem o adubo de novos sonhos que talvez se realizem. É o sujeito anônimo que faz girar a máquina produtiva deste país, esse cara espoliado pelo governo e pela ambição do capital, que o lucro é só o que interessa à empresa da qual tem o orgulho de compor o quadro de funcionários. Ao contrário dos demais ídolos que já tive esse é acessível e não carece de culto, tampouco massagem no ego. É porque é. Sem pretensões de altos reconhecimentos e sem consciência de sua grandeza por que foi ensinado a ser pequeno, a honrar a graça da servidão. A brindar à saúde do patrão com o cálice amargo do insuficiente contracheque.
Sigo para a segunda jornada de trabalho, um pouco esbaforido, com os minutos contados sempre, como todo vivente que depende de um coletivo para ir ao trabalho. A mesma linha de que me valho todos os dias embarcando no ponto da Rua Vereador Jésus Martins, passa próximo de onde costumo almoçar, só que dez minutos mais cedo e pouquíssimas vezes consigo sacrificar parte de minha refeição em prol das pernas que me tem de me levar ao ponto de ônibus alguns quarteirões adiante. Hoje por sorte, à altura da Praça Mário Ernesto da Silva, onde há um ponto assoma a lotação e o Zé me espera atravessar a rua. Bem na horinha.
Galgo o estribo metálico. O Zé me recebe com efusão, como recebe a todos sempre. Grande figura! É o condutor desta linha e trabalha só, acumulando as funções de motorista e cobrador, artifício que as empresas de transporte urbano vem usando ultimamente, impondo um certo sacrifício aos usuários do serviço de transporte e aos das vias públicas que ficam obstruídas enquanto o herói do cotidiano faz o recebimento e volta o troco, mas sacrifício mesmo é imposto a este, o Zé. Ele não se incomoda. Está sempre alegre. Tem sempre uma palavra de simpatia para cada passageiro que, naturalmente, respondem no mesmo tom. Chama a todos de Zé. Todos o chamam de Zé. Luizão, passageiro também de todos os dias comenta comigo: “o Zé é que sabe viver”. E naquele ônibus cheio de Zés eu sei a que Zé ele se refere.
O catajeca faz um giro demorado. Laranjeiras, Bela Vista, Marisa, Nossa Senhora do Carmo, rotatória da Fartura e finalmente alcança novamente o centro e passa pelo meu ponto de espera habitual. Entram os mesmos passageiros e é um tal de Zé-pra-cá-e-Zé-pra-lá que só vendo. Arranca, toma a Av. Padre Lauro e na altura da Praça Ana Rosa, apelidada de Praça do Savon, um entrave. Há veículos estacionados corretamente à esquerda, à direita uma motocicleta tomava por alguns centímetros a passagem. O Zé aguarda um pouco pelo bom senso do condutor que não aparece. Pacientemente puxa o freio de mão, desce, faz pequena alteração na posição do guidão, ganha pequeno espaço, arranca novamente mostrando sua perícia. Segue o trajeto com o mesmo contagiante bom humor.
O Zé é que sabe viver. Pode não ter reconhecimento, não portar medalhas, não ostentar títulos, mas é um grande ídolo. Sem pés de argila. Sem pretensões de altos reconhecimentos e sem consciência de sua grandeza. É porque é, simplesmente.
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/03/2018