Textos
Três mulheres me ensinaram a dizer amém
É difícil arrancar da cama o velho corpo. Faço com pífio resultado um esforço enorme . Levo alguns minutos nessa batalha, só mais uma na infindável luta do espírito com o corpo. Reluto em usar o adjetivo uma vez que percebo a cada dia a aproximação do fim. Que maçada! O espírito está cheio de vigor, sedento de vida, mas a velha carcaça se nega a prosseguir. É preciso dar um tempo para que ossos, nervos e músculos em lastimável estado de decrepitude se adaptem às novas posições. Um suspiro de alívio me sai automático quando me tenho finalmente de pé. A luz de vigília, providência amorosa de minha doce Maria Cecília facilita aos olhos cansados o calçar das chinelas e o deslocamento até a parede onde às apalpadelas chego ao comutador, a luz inunda agressivamente o quarto me forçando a fechar os olhos por alguns segundos. Também eles precisam se adaptar às novas circunstâncias e isso também demanda algum tempo. Tempo! Isso tenho de sobra, dessa porção que me é dada a cada dia. Quanto mais avança a idade menos necessidade se tem de dormir, por conseguinte mais tempo se tem para as tarefas que, por sua vez, vão se despindo de premência e se vestindo de trivialidade.
Visto o roupão sobre o pijama, recomendação da minha velha. Estranho! Há vinde anos que ela passou para outro plano e aqui está o meu amém. Não procure doença com as próprias mãos — dizia ela — leve um casaco. Pode esfriar. Não esqueça o guarda chuva. As pessoas permanecem mesmo depois que se vão. Era difícil. Eu sabia que o tempo não esfriaria, tampouco a previsão era de chuva, mas tinha preguiça de discutir. Só dizia amém. Agora estou velho e aquelas determinações expressas certamente tem me valido. Deus pôs no caminho dessa minha existência três mulheres espetaculares. Minha mãe, que me ensinou a dizer amém com a didática das alpercatas; minha mulher que me possibilitou a pós graduação nessa matéria, sua didática era a da persuasão pelo falar incessante, pelo repisar da temática. Eu que passei a vida cultuando a parcimônia das palavras, sempre soube reestabelecer a paz do silêncio com o ponto final daquele amém, concordância incondicional, aprendido sobre os joelhos maternos. A terceira mulher da minha vida, é essa Maria Cecília. Ela tem a didática da doçura.
Minha neta foi tudo o que restou de toda a minha parentalha. Seus pais morreram num acidente de carro quando ela contava nove aninhos. Veio viver com os avós septuagenários. Um ano depois, antes mesmo que superasse a terrível perda, foi a vez de sua avó nos deixar. Foi arrebatada de nosso convívio por uma pneumonia besta que a incompetência médica não pode vencer. O respeito que sempre nutri pela instituição da família deu-me um novo alento para prosseguir. Tive que me remoçar para acompanhar a adolescência e a juventude daquela menina tão cheia de vida.
Ano passado, no meu nonagésimo aniversário, a arquiteta Maria Cecília presenteou-me com este apartamento ao lado do seu, onde vive com o marido. A divisão interna é idêntica à da casa de bairro onde vivíamos e numa das paredes da sala ela afixou um grande quadro com a paisagem da janela da antiga casa. A maior parte do tempo nem me lembro que estou no oitavo andar. A ideia da menina em reproduzir a morada lembrou-me a excentricidade de Bento Santiago, que construiu, para sua nova vivenda, casa idêntica à que passou a infância na rua de Matacavalos. E desconfio que ela nem tenha lido Dom Casmurro.
Caminho devagar em direção à cozinha, as luzes acendem automaticamente por onde vou passando. O café da manhã está posto à mesa como de costume, tudo de acordo com o cardápio elaborado por uma nutricionista. Desse jeito acho que vou aos cento e vinte. Sento-me com alguma dificuldade. Observo que o café foi servido com certo exagero. Deve dar para umas vinte pessoas. No centro da mesa há algo coberto com uma espécie de cúpula de vidro fosco. Não me atrevo a mexer naquilo. Fico quieto, meio sem ação. É quando de todos os cantos começam a sair pessoas amigas e a cozinha se enche, entoam “parabéns pra você” e Maria Cecília remove a grande cúpula que escondia um bolo de aniversário. Por brincadeira inverteram a ordem das velinhas. 19 anos. Pois sim!
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 25/07/2019