Carlinhos Colé
Mais triste do que não saber ler, é saber e não querer
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Textos
Em duplicata
        Uma família linda. Mais pelo conjunto do que pela plástica individual de seus membros. Minto! As gêmeas eram um encanto. Duas meninas ali pelos três anos, de aspecto saudável, de vestidinhos e marias-chiquinhas aparelhadas, de sandalinhas iguais. Aliás, iguais eram as duas crianças. O marido, homem de meia idade, calvo, de compleição avantajada, simpático como todo gordo, carregava uma das dídimas. A esposa, presença agradável, fator que se justificaria simplesmente em razão do gênero, fosse o caso de lhe faltar outros atributos, carregava a duplicata. Passaram pela catraca e, estando ocupadas todas as poltronas dos lados das janelas, tiveram que se sentar separados, um de cada lado do corredor que, pela virtude mesma de sua exiguidade, não os distanciava tanto.
        O conflito teve início quando um adolescente alto e magro, de bermuda, camiseta cavada, mochila, boné, tênis enormes, fone de ouvido, trazendo na mão um pacote de bolacha recheada, empreendeu uma travessia até o fundão, Interpondo-se de passagem entre as duas facções, de costas para o lado totalmente feminino e de frente para a banda mista. A menina imediatamente estendeu a mãozinha espalmada para o jovem numa muda e eloquente súplica. Ele parou, hesitou um segundo, tirou um biscoito entregou à menina e foi sentar-se na última poltrona.
        A outra menina, ao ver a irmã saboreando aquela delícia, estendeu para ela a mãozinha. A detentora do biscoito refugou a ideia da partilha abanando a cabeça e escondendo a guloseima no babadinho do vestido. Os pais se entreolharam atontados. Tentaram negociar, mas a pequena estava irredutível. A mulher, que não sabia de onde saíra o objeto daquela contenda, indagou na linguagem muda do olhar, só compreendida pela cumplicidade dos esposos que se amam. O homem inclinou-se e olhou para o fundo do ônibus. Ela seguiu o seu olhar. Lá estava o moço sentado na poltrona do centro, no final do corredor, mastigava de olhos fechados, a cabeça reclinada no encosto estofado, recreando o paladar e a audição, os demais sentidos em off.
        A mulher fez uma última tentativa de acordo. Debalde. Ergueu-se então numa atitude de mãe que o ônibus em movimento tornava epopeica. Avançou intrépida pelo corredor, com a menina num dos braços a se arrimar com o outro nos espaldares, tocou a aba do boné do rapaz. Ele abriu os olhos e deparou-se outra vez com a mãozinha suplicante. Não compreendia como uma menina tão pequena podia engolir um biscoito com tanta rapidez. Sopesou a possibilidade de comer seu petisco e ao mesmo tempo ter sossego. Concluiu que teria de fazer uma escolha. Entregou logo o pacote e voltou aos Detonautas.    
Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 25/10/2019
Alterado em 22/11/2019
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